quarta-feira, 3 de julho de 2024

Alto e Baixo

Claro que esperavam que esses últimos dias fossem capazes de reacender em mim uma chama. Que descansar um pouco poderia me ajudar. Quantas vezes eu já disse, e que nunca me ouviram, que meu problema não era cansaço. Não, cansaço não é. É que estou esgotado de tal modo que não são apenas três dias que vão me salvar.

Ainda que tenham sido dias lindos, que aquele sol poente seja agora uma marca profunda na minha alma, que aquele sorriso doce, que aquelas percepções tenham me marcado e que tenham sido dias realmente felizes, não, não é apenas isso que vai me salvar. E não o digo de um modo negativo e puramente pessimista, também seria pecar pelo oposto superficial. 

Não, não importa o que aconteça, nos últimos anos inteiros em que se me entranhou no meu ser uma desilusão, um descontentamento tal que esvaziou tudo. Então, tudo o que posso dizer, de modo mais sincero impossível, é que é tarde demais para minha salvação. Meu amor, eu não tenho mais salvação.

X

Passei rapidamente por um rapaz lindo ao descer do ônibus. Nos conhecemos brevemente da igreja, mas nunca conversamos realmente, afinal do que falaríamos? Mas ele sorriu e me acenou, e eu, absorto em pensamentos, quando o vi, dei um sorriso largo demais para esta hora da manhã. 

Tive de forçar os olhos para conseguir me concentrar na leitura. Terminei uma versão em verso de Homero na semana passada, me concentrei em ler dessa vez usando o ritmo sugerido pelo tradutor, o que foi uma experiência e tanto. Me recordei da última versão que tinha lido, transformados em prosa, o que facilitou a leitura em alguns pontos. Gostei, no entanto, da aproximação musical que esse Carlos Alberto Nunes deu. 

Comecei, propositalmente, outro livro do velho Buck nessa semana, e o contraste é gritante. Enquanto temos, de um lado, a cristalização de dramas do espírito humano nas personagens milenares dos gregos, a todo momento lembrando os grandes feitos, as vontades profundas, as lutas e as grandes questões do homem frente ao Destino, a Morte e a eternidade. Por outro lado, temos a confrontação com esse lado mais baixo, escatológico mesmo, do homem. Com acontecimentos banais, pessoas idiotas, nojentas, mas que, ao mesmo tempo, são iguais a tantos de nós. 

Me identifico com ambos, ao mesmo tempo, em que penso no Destino último do homem, recordando o encontro de Odisseu com os guerreiros no Hades, também penso nas coisas mais estúpidas, como o pornô de ontem a noite ou as espinhas no rosto do menino que falou comigo de manhã. 

Vou tomar outro café, infelizmente não tem whisky no trabalho.

"E novamente a angústia. Começou prudentemente, como uma carícia, depois instalou-se, modesta e familiar, no vazio do estômago. Não era nada: simplesmente o vazio. Vazio dentro de si e à sua volta." (Jean-Paul Sartre)

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