terça-feira, 2 de julho de 2024

A Epopeia de Kaoru

Como se a brisa ou a delicada luz do sol, que me beijava a face, me tomasse pelas mãos e me conduzia pelas ruas estreias cheias de pedras, desgastadas por anos de história. Quantos pescadores, quantas bruxas, quantas crianças correram por aquelas ruas, ouvindo o sino da matriz, ou vendo chegar os homens que vinham trazer as ostras que as mães iam fazer durante o fim de semana?

Como quem atravessa um portal me vi numa terra idílica, povoada de figuras curiosas, cores intensas e formas engraçadas que me rodeavam, como se me sorrissem, numa brincadeira digna de ser orquestrada mais tarde por Ravel ou Stravinsky. Uma figura doce, de pele morena e óculos pretos, tímido, me recebeu enquanto eu fitava seus olhos escuros, as mãos escondidas por medo do frio. Sua voz grave rompeu a sonata dos sinos de vento que eu ouvia, mesmo que não tenha visto nenhum por perto, mas era como se um algum canto divino tocasse desde que eu chegara até ali. Fui guiado então, por entre as cerâmicas coloridas, pela voz grave e pela luz do sol, passando por um pequeno umbral de madeira, o batente antigo indicando que dava para algum tipo de quintal.

Qual foi minha surpresa então quando, passando, me vi num jardim secreto, que se revelava aos meus olhos como se tivessem tirado vendas dos meus olhos ou que um encantamento o fazia de repente aparecer, em meio as luzes rosadas e brancas de uma ilha mágica. Como num conto de fadas o cenário era composto por elementos díspares que, no entanto, pareciam ter sio feitos especialmente para aquele lugar e que ali deveriam continuar indefinidamente. Castiçais de bronze e prata que seguravam velas derretidas de um século, as paredes como de um castelo onde príncipes e princesas dançavam em bailes que duravam eternamente. O café daquele mago com corpo de cavaleiro me aqueceu o coração 

O grande dia passou lentamente, como aquela música em que aproveitamos cada minuto, cada som de cada instrumento. 

O sol poente pintou o céu de cores exuberantes, uma miríade de artistas, de todos os tempos, se revezavam naquela grande tela, misturando tons de rosa, amarelo, laranja e cinza. Não é possível descrever de outra maneira, e nem procurei palavras para tal, aliás, naquele momento a minha mente silenciou totalmente, absorta naquelas luzes que se espalhavam e que pareciam me chamar, como um canto de sereia, para caminhar rumo ao horizonte, ignorando o tapete de águas cinzas que se estendiam indefinidamente, se perdendo no orbe ao encontrar-se com montanhas distantes que serviam de base para aquelas luzes, como castiçais feitos por Hefesto ferreiro divino.

E por falar nos deuses, alguns deles se mostraram, andando por entre homens e mulheres que passavam sem notar sua presença ou enfeitiçados por eles. Apolo, arqueiro das flechas douradas, foi o último a dar as costas, quando o sol se pôs, indo adormecer em seu leito. Outro, que não soube o nome, abriu sorriso tão belo e tão largo que homens e mulheres se encantaram por ele, de tal modo que eu também fiquei como que hipnotizado, encantado em sua voz e seu sorriso, com as covinhas marcadas no rosto belo e altivo. As deusas de pés rápidos passavam a todo instante, como se o fim daquele dia marcasse o início de alguma reunião de grandes dimensões, se perdendo por entre todos, subindo e olhando-nos de cima. 

Fechei os olhos, em cama segura a abrigo dos ventos frios, e via em retrospecto todas essas imagens, sentindo uma vez mais a luz do sol aquecer minha face enquanto adormecia. Esse mundo de delicada magia, mundo interior que não deve ser dado ao externo brutal e cruel. Mundo de encantos e sonhos que só devem ser revelados aos pertencentes desse mesmo mundo, mundo que não será compreendido jamais, que permanecerá escondido como aquele jardim secreto, aqueles Elíseos, onde apenas os deuses podem conhecer. 

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