terça-feira, 30 de julho de 2024

Olhar Sensível

É preciso muita sensibilidade para perceber o outro. Para perceber uma sutil mudança no olhar, indicação de uma profunda lembrança dolorida que veio à superfície e que a pessoa conteve com tudo de si. Perceber as mudanças nas palavras, ainda que substancialmente não tenham mudado, e ter a empatia de entender e respeitar o lugar do outro, de admirar à distância ou de oferecer-lhe verdadeira companhia, ou a simplicidade de um sorriso, ou toque confortador. 

Isso me veio à mente num episódio de Takara's Treasure. Obras japonesas costumam trazer essa temática da sensibilidade afetiva à tona, e talvez eu quisesse que mais pessoas ao meu redor conhecessem. Numa sociedade onde o espaço pessoal é tão valorizado, as obras tentam buscar nas pessoas o calor humano de que as relações necessitam. A iluminação é sempre natural, um pouco mais quente, e os ambientes internos aconchegantes e acolhedores, mesmo quando as séries e filmes são gravados no inverno: eles têm como objetivo compartilhar o calor que justamente lhes falta no dia a dia. 

Ao meu redor tenho muita dificuldade de me aproximar das pessoas. E já me referi a isso muitas vezes. Mais recentemente, até mesmo das pessoas de que já era próximo eu acabei me afastando. Isso porque eu tenho me revoltado assustado com todos traumatizados, irritados, cansados demais para perceber o outro com essa delicadeza, com esse acolhimento de coração. Até de quem amo vou pouco a pouco me afastando.

Há aqui certa dose de incompreensão. Eu sou do tipo que diz o que sente, que deixa clara todas as minhas intenções, e nem todos o são. Mas, algo acontece com o mundo, algo acontece ao meu redor, que ninguém se entende, que ninguém parece sequer ver o outro. Daí chegamos ao extremo de negar até mesmo o sentimento mais puro que pode ser oferecido. 

Isso chegou ao ápice nos últimos dias quando disse que percebia que ninguém queria contato, ninguém queria toques, ninguém queria aproximação, ninguém queria invasão do seu espaço, ao mesmo tempo que todos reclamam da solitária existência. Se você é amigável demais, é intrometido, é assim que os outros me enxergam. Se você é mais quieto, é metido. No fim, não temos nunca esse olhar delicado de ver o outro, suas dores, perceber suas necessidades. Não olhamos mais para o outro. 

Me impressiona ainda, caminhando para o fim dessa breve reflexão, o quanto perdi toda e qualquer vontade de fazer as coisas que antes gostava. Depois de literalmente meses eu consegui terminar um dorama que, por não ser BL, tive dificuldae de acompanhar, mesmo sendo excelente. Ao fim, descobri que já foram lançados os novos episódios de outro dorama, também com o Lee Do-hyun, um de meus atores favoritos, e ainda tenho tempo para assistir mais hoje, mas ainda assim prefiro simplesmente ir dormir. 

Talvez continue na outra semana. Ou nem isso. É um dia perfeito para dormir a tarde toda, já que a vida, o trabalho e os desamores me sugaram toda e qualquer vontade de fazer alguma coisa. Até tenho brevíssimos vislumbres de algo melhor, como fazer um chocolate quente em dias frios como esse, mas logo passam, como fumaça por entre os dedos. 

Tenho preferido então a solitária contemplação. Até mudei os planos para hoje, ao invés de assistir um pouco mais na minha folga, vou voltar a dormir, meio bêbado e dopado, pois me encanta estar inconsciente nesse mundo tão horroroso. 

Me encanta não receber olhares frios e de desprezo como ontem à noite. Me encanta não esperar por mensagens e respostas que não virão. Me encanta poder, pelo menos por algumas breves horas, me ausentar de mim mesmo, não precisar olhar no espelho e ver que minha barba já torna a crescer bravamente, diferente daquela pele lisa e perfeita dos asiáticos que assisto, que meu cabelo está uma bagunça, que meu corpo ao menos no inverno fica escondido nos casacos, me encanta estar longe de tudo isso. 

Me encanta nem mesmo sonhar, já há tempos não sonho acordado também.

Me encanta estar inconsciente. 

A vida não é a doce cena de uma série japonesa.

Não vale a pena.

"Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?"

(Álvaro de Campos)

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