quarta-feira, 31 de julho de 2024

Sombra


"Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar..." 

(Álvaro de Campos)

Tomado por aquele pessimismo de novo, daquela desesperança tão profunda que me faz olhar tudo ao redor com profunda apatia, tédio pela perspectiva mesma da existência. Bom, dizer que é algo que me toma de novo não é bem preciso, não, essa sensação está sempre presente, apenas revisita com um pouco mais de intensidade às vezes.

A vontade é de ficar o dia inteiro na cama, sem responder a ninguém, como fiz ontem, aquela escuridão acolhedora, tão semelhante à escuridão do meu próprio coração. Mas infelizmente não é possível. A desgraça da vida social. Dormi a maior parte do dia, acordei brevemente para ouvir a Sinfonia N° 1 de Brahms e a de N° 6 de Tchaikovsky antes de adormecer novamente, voltando à doçura da inconsciência. 

Não houve sequer tempo, ou disposição do espírito para uma meditação mais profunda, sobre o que quer que fosse. Já há alguns dias pensei em esboçar um ensaio sobre o gnosticismo em Fullmetal Alchemist Brotherhood, mas me falta exatamente ter disposição a começar. 

Disposição.

É uma palavra sem sentido para mim. Olho pela janela e vejo carros passando e uma ou outra pessoa andando, a maioria se escondendo do frio. Mas todos estão trabalhando, correndo para compromissos, acordos, namoros, encontros. Eu nem quero responder meu WhatsApp, a visão de falar com quem quer que seja me cansa: ninguém vai entender e eu não vou entender ninguém também. 

De onde todos tiram tanta disposição?

É preciso trabalhar para viver, mas acho que eu estou fazendo isso errado. Apesar de tanto trabalho, nunca me sobra dinheiro para ir ao cinema ou simplesmente tomar um chopp no fim de semana. Não que eu tenha alguém para fazer isso, é que às vezes ao menos pensar nessas possibilidades me fazem pensar que talvez valesse a pena viver, pelo menos por um breve instante que seja. Talvez tenha algo de essencial na vida que eu tenha entendido errado. Sigo nessa existência entediante e vazia, ansioso pelo fim.

Queria conseguir aderir aquela posição de Sto. Afonso, em que a felicidade nessa vida realmente é uma idealização tosca, no entanto, é possível ser feliz apesar de toda dor e sofrimento tendo em vista a vida feliz da eternidade. O santo doutor na sua sabedoria, herdeiro da tradição católica, é claro, conseguiu o que eu não consegui. Minha posição é mais próxima a de Schopenhauer, de que a vida pende entre o tédio e a dor, não sendo possível a felicidade, ainda que o filósofo dê alguns conselhos em seus aforismos, talvez de modo a pelo menos atenuar a sofreguidão que é essa existência. Eu não consigo olhar mais adiante que isso, apenas a lama atual em que me encerro.

"Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?"

(Álvaro de Campos)

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