sexta-feira, 31 de maio de 2024

Consciência e Moralismo

Giuseppe Antonio Pianca

Já é certo que o puritanismo e certo moralismo de origem kantiana são danosos ao homem como um todo, não só ao homem de fé, mas dessa vez venho refletir sobre um ponto específico que, não raramente, é causa de confusão pela aparência de contradição. Aqui, de modo mais pessoal, me refiro a ti mais uma vez me desculpando pela soberba de julgar poder lhe ser útil em algo, mas acrescento ainda que, se me permite ajudar, ajudo também a mim. 

Certa vez já comentei com você aquela citação que "o poste que indica o caminho não vai ele mesmo pelo caminho", a qual eu não consegui encontrar o autor, senão que tenha sido citada pelo Prof. Olavo em uma aula justamente a respeito desse assunto. 

A moralidade é algo presente nas nossas vidas hoje de modo arrasador. Os detratores da Igreja não fazem ideia que, sendo justamente a moral um substituto da religião, por essa razão mesma ela se torna tão pesada quanto deformada. Isso porque, não raramente, somos tentados a suprir todo lócus emocional por meio da afirmação externa, ou seja, se o outro disser que somos morais nós assim nos sentimos, o que resulta por fazer com que todos tenham que agir polidamente de modo a encarnar sempre uma nova mulher de César: o retrato perfeito da moral e dos bons costumes.

Com isso, quando falamos, por alguma razão qualquer, sobre valores como a castidade ou até mesmo a simples honestidade, já somos logo atacados, especialmente no âmbito católico, acerca das afirmações hipócritas. Segundo esse raciocínio, se alguém não é capaz de viver a castidade, jamais deveria falar dela. Não é preciso ser um gênio para entender que, se fosse assim, todas as virtudes desapareceriam completamente do plano social, como muitas vezes parecem ter desaparecido e sido substituídas por um simulacro: é preferível a aparência de virtude, já que a virtude não é possível.

"É necessário que muitos, que todos preguem uma moral superior a suas ações. O ministério... faz com que homens débeis e que de fato cedem algumas vezes às paixões preguem uma moral austera e perfeita. Ninguém pode acusá-los de hipocrisia porque falam por missão e por convicção, e confessam implicitamente e às vezes explicitamente estar longe da perfeição que ensinam. Ocorre infelizmente que às vezes a pregação desce ao nível dos costumes, mas isso é um inconveniente: sem o ministério seria uma regra." (A. Manzoni)*

Não costumo me importar com as acusações de hipocrisia, com efeito, sei que choco muitas pessoas com meu jeito e com as coisas que digo e faço, mas isso porque já vi o suficiente desse moralismo tosco para saber que, quanto maior a afetação de moralidade, pior a consciência por trás dela. Sendo então proporcionalmente destrutivo os ataques disparados aos outros. 

O meu ponto é justamente que, vale mais lutar e cair dezenas de vezes do que simplesmente se entregar, como se nada mais importasse, como se de repente pudéssemos trazer à tona todos os vícios e exaltá-los como se fossem virtudes. A luta é tão importante, pois sem ela, não daríamos valo a vitória e, se estamos realmente em busca de prêmio tão grande, tão grande também deve ser nossa luta e nosso gloriar na cruz dessa batalha, não é mesmo?

Essa luta é então motivada por uma consciência desperta e que impulsiona as demais potências do ser em direção ao objetivo a ser atingido, a saber e a nunca se perder de vista: a salvação, razão pela qual fazemos tudo o mais na nossa vida, inclusive aquelas coisas que parecem pouco a nada ter a ver com isso. 

A principal busca então deve ser a da transparência para consigo mesmo, algo que se mostra e se nos revela a nós como uma assíntota, dela vamos nos aproximando gradualmente, e em outros momentos nos afastamos, e a insistência nessa busca é que garante a não conformidade com o mundo ou com a mediocridade confortável que, como vejo, tanto te causa dor. Isso significa então constantemente olhar para aqueles pontos de nós mesmos que não queremos olhar e, fazendo uma sincera busca da Verdade, aceitar a verdade que é ver os pecados que há em nós. 

No entanto, é justamente nessa confrontação que podemos encontrar aquilo que podemos mudar. Se tomar, por exemplo, o ambiente terrivelmente opressivo do cristianismo americano, onde é cobrado de todos uma conduta perfeita, e onde o menor deslize pode acabar com a vida de um sujeito. Conforme essas seitas foram se afastando da Igreja Católica e abolindo, simplificando ou ressignificando os sacramentos, o peso formador da religião foi todo transmutado para a área da moral, exigindo então de todos uma perfeição moral inalcançável e, ao mesmo tempo, obrigatória a todos.

Quando vemos então os pecadores que até na Bíblia foram considerados justos, como Abraão, o Rei Davi e seu filho Salomão que, apesar de suas faltas continuaram sendo exemplos de grandiosidade, não foi porque Deus ignorou seus pecados e suas imperfeições, mas que, pelo fato de Deus ser Justo, considerava esses pecados dentro do quadro geral de suas vidas, isto é, Deus considerava a proporção de suas faltas com relação as demais virtudes de suas vidas. Todos foram punidos por seus pecados, mas isso não significa que os pecados tenham tomado proporção maior que a das virtudes daquelas vidas. 

Donde quero chegar com isso: ao buscar a virtude, ainda que se comece pelas pequenas coisas (afinal por onde mais poderíamos começar?) conseguimos aos poucos chegar até as grandes. Não pense que grandes estudiosos sempre o foram grandes estudiosos. Se gigantes como Bento XVI ou São João Paulo II chegaram a escrever sozinhos o que em muitas épocas foi maior do que bibliotecas inteiras, foi porque um dia tiverem de começar no primeiro livro, e tiveram de avançar em algumas áreas que não conheciam, e insistir, sem parar, sem precipitar e sem retroceder. 

Então, dentro da personalidade total cada coisa tem um peso. Isto é, quando São Pedro diz que "a caridade cobre uma multidão de pecados" (1Pd 4, 8), ele quis dizer o seguinte: Deus é a única imagem de amor verdadeiro, dessa imagem somos cópias reduzidas, mas quanto mais nos aproximamos dessa imagem de amor, mais nos aproximamos da imagem total, diante da qual os pecados tem um peso muito menor pois, sendo eles a ausência da caridade, não há um polo oposto de tipo maniqueísta do qual eles se aproximam. 

A nossa imagem total, da qual tomamos aos poucos consciência, é então, composta pela totalidade das ações, as quais incluem também os pecados. Isto é, o quadro geral deve ser belo apesar das pequenas falhas. Tomemos o conselho de São Pe. Pio diante do pecado: se fez o pecado, agora faça o bem. Não fique em agonia ou angústia. Quando fizer algo errado, reze, não se preocupe e se concentre em fazer algo bom. Tenhamos em mente que até mesmo o pecado de Adão tornou-se, na transmutação, em culpa feliz. Isto é, tomada individualmente o pecado de Adão foi devastador, mas tomada no conjunto da história da salvação foi algo que tornou necessária a ação presencial do próprio Cristo.

Então essa compulsão de ficar pensando em pecados o tempo todo, desesperando-se de cada pequena falha, de cada pequeno erro, como se Deus estivesse mais preocupado com o fato de um jovem se trancar no banheiro para se masturbar ao invés de tentar ser uma boa pessoa que, apesar de tudo, se masturba, isso é uma negação, uma inversão da justiça divina. Será que Deus então não levaria em conta nossa vontade de sermos bons? E não nos ajuda quando pedimos que nos dê força para fazer o que é bom e o que é certo?

Não se trata de tentar Deus, mas de confiar na misericórdia e, uma vez tocado por ela, saber que ela é maior do que a nossa tendência de pecar. Contar com a misericórdia não é tentar a Deus, é se entregar a ele, é ter adoração a Deus que nos perdoa e que nos chama ao perdão. Mas se começamos a nos preocupar com a moral quantitativa, aí somos destruídos pela nossa própria consciência, quando ela é que deve nos aproximar dele. Tomando o pecado do homem que busca a Deus e do homem que nada se ocupa de Deus, ele julga com misericórdia aqueles que o buscam e que admitem suas limitações. Acaso ele nos julgaria com maior severidade do que aqueles que por escolha se afastaram dele? 

Não façamos guerra contra nós. Esqueça dessa história de parecer perfeito, peça a Deus que ele nos conforme a sua imagem e, assim, nos tornaremos pouco a pouco mais perfeitos, sem aparência, mas numa conformidade real a Deus. Olhemos para Deus, para sua perfeição, não para nossos pecados. 

"Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima vossa Igreja; dai-lhe, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo."

~

*A. Manzoni, Osservarzioni sulla Morale Cattolica, ed. cit. III, p. 135.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

O vaso partido de Ganimedes

Tem uma roda de leitura para participar hoje à noite, e amanhã de madrugada tem a confecção dos tapetes de Corpus Christi, e é claro que meu corpo já protesta a tudo isso. É claro que minha única vontade é de ficar deitado, sem fazer nada e, se possível, dormir de novo. Eu só queria dormir, e não me preocupar com mais nada, apenas isso. É possível um mundo em que eu possa me acabar de dormir, e nunca mais me preocupar com nada? Como faço para que me esqueçam? Vivo então, entre querer ser lembrado por uns e esquecido por outros, por aqueles que só me trazem problemas. É pedir demais poder viver em paz? 

O primeiro amor passou, o segundo amor passou, o terceirou amor passou, disse o poeta. Mas cada um deles levou algo consigo, como uma parte de mim, e se antes a bela ânfora adornada de pedras preciosas podia despejar aos pés dos amados os perfumes mais delicados e sublimes, agora já não é mais do que um vaso que se quebrou e perdeu seu valor. Não há Kintsugi ou ressignificação que possa mudar isso. Porque não há apenas imperfeições acidentais a serem aceitas, mas uma imperfeição essencial, profunda, que é a própria forma do meu ser. Já não há nada que fazer além de aceitar, aceitar que não fui, não sou e nem serei bom o bastante para ser escolhido.

Também aquele outro jovem não me escolheu, sorri agora timidamente ao lado de uma moça. Mais uma vez. Não sei mais quantas já se somam. 

Não cheguei há tempo e ainda me esqueci completamente da roda de leitura. Fiquei no vácuo por duas ou três pessoas que não me responderam. Coloquei o despertador para quatro e trinta da madrugada amanhã, quando os termômetros deverão marcar por volta de 8° ou 9°. Talvez a exigência da vida em comunidade possa suprir brevemente minha necessidade de remoer minhas próprias misérias. Coloquei trinta ou quarenta gotas de tintura de valeriana e colonia, misturei com vinte gotas de Rivotril e um comprimido de Zolpidem 10mg. No difusro, luz lilás com gotas de óleo essencial de Copaíba e Ylang Ylang, por fim uma playlist composta em sua maioria de nomes asiáticos, como Eric Nam, Jeff Satur, Joong Archen , Fujii Kaze e Boy Sompob. 

Espero ao menos adormecer, mas antes disso, meu último questionamento, ao universo que seja: será que não mereço ao menos uma resposta? Ainda que dura e fria, para que assim pudesse o vaso quebrado tornar-se apenas cacos espalhados e, ao menos, ir ao lixo sem que daí reclamem comigo por me atear fogo a mim mesmo? Poderia simplesmente me tornar uma estrela como Ganimedes. 

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Inquietude

Madrugada adentro, a temperatura despencou lá fora, e aqui eu me encontro inquieto, as dúvidas me acordaram num susto depois de um breve instante de sono. Por mais que queira não consigo dormir, elas pulam de um lado para outro como acrobatas num circo. 

O que há de errado comigo? O que há em todos os outros que eu não tenho? O que em mim é tão insuficiente para você?

Não sinto frio, sinto apenas o desolamento brutal de uma alma solitária, a solidão é o vesto que fustiga minha face, que me corta minha pele. Saber que não sou bom o bastante dilacera a minha carne como aço frio, esmaga meus músculos e rasga cada fibra do meu ser que, a esse ponto, só consegue clamar por ti. 

É patético, eu sei, mas cá estou eu, numa madrugada pensando em você enquanto dormes ou fala com outra. E em nada eu sou bom o bastante para você. 

É justo que eu permaneça no escuro? É justo que eu continue sem respostas? É justo que eu continue a caminhar sem destino procurando por você?

Foi uma noite inquieta, atribulada por pesadelos e pensamentos que se mesclaram e, em dado momento, já não sabia o que era sonho ou criação da minha própria mente. Acho que tive febre, perdi a noção das horas e delirei dizendo seu nome baixinho algumas vezes. Quando adormeci brevemente, foi pedindo que não acordasse, ou que pudesse acordar ao seu lado. 

Foi uma noite inquieta, cheia das paranoias que criei, cheias dos sentimentos transbordantes, inflamado de amor, paixão, desejo incontido, inconformado. Agora o corpo paga o preço de um coração que se recusa a fechar-se. 

E você nem imagina não é? O quanto meu coração se inquietou por você. 

"Acolhe-me em teus braços, nas profundezas, acolhe-me nas profundezas." (Franz Kafka)


terça-feira, 28 de maio de 2024

Retratos desanimados

Ridículo. Adjetivo
que provoca riso, escárnio ou zombaria.
de aspecto espalhafatoso, extravagante.

Passei os últimos dois dias dormindo, é verdade, e em nenhum momento me ocorre o pensamento "mas você poderia estar fazendo outra coisa, poderia estar vendo outras pessoas." Não, em nenhum momento eu sinto que estou perdendo algo em me isolar do mundo lá fora. Do silêncio do meu quarto, do meu sono profundo e dopado, eu sinto que não há mais nada lá fora que possa querer. E o dia hoje está bonito, embora tenha sido obrigado a sair da cama. O sol brilha forte, mas está fresco, até arrisco a colocar um cachecol. Mas o brilho do sol não enche meus olhos. Em verdade, eu só queria poder deitar novamente e dormir sem ter hora para acordar.  

Acho que isso mostra, na realidade, o quanto ando desanimado para tudo. Não se encontra mais em mim a mínima vontade de sair, conhecer lugares ou pessoas novas, senão que encaro a própria possibilidade do ser com pessimismo e tédio profundo. 

Não acho que isso seja um problema, pelo contrário. Uma amiga disse que é melhor não sentir nada do que tristeza, ódio ou solidão, e é exatamente isso. Prefiro olhar o horizonte, belo, e nem mesmo me encantar com sua beleza, do que sofrer o desamor de quilômetros de distância.  Há entre nós um silêncio desconfortável de palavras não ditas e sentimentos que fui deixando pelo caminho, assim como partes de mim que ficaram e que não consigo encontrar mais. O problema não é o sonho, ou o medo, o problema sou eu. O problema sempre fui eu! 

Eu que sou ridículo. Ridículo! Não há outra forma de ver a situação senão esta: que venho sendo ridículo e me humilhado por migalhas, me abrindo enquanto tenho em resposta o silêncio que confirma minhas suspeitas: a culpa sempre foi minha, por não ser bom o bastante. Eu nunca sou o bastante. Eu sou sempre ridículo. 

Tentei encontrar beleza em algum lugar. Descobri artistas novos, estou ouvindo baixinho agora, também presto atenção ao café fumegante na minha frente, acho que meu sangue mineiro falou mais alto, pois está ótimo, também observo as luzes do difusor que há na frente da minha mesa, oscilando entre diversas cores e lançando no ar uma fumaça perfumada de óleo essencial de lavanda e sândalo. Penso se deveria aproveitar a bela luz do dia e tirar algumas fotos, mas não sei... Acho que não vale o esforço.

"Queria te falar... te falar esses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo." (Hilda Hist)

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Verdade ignorada

Por algum ângulo talvez eu tenha dormido demais, ou pelo menos, foi isso que me disseram em casa. Dormi ontem por volta de duas da tarde, e acordei só hoje, perto das nove da manhã. Não acho que foi tanto assim. Mas o que eu faria acordado? Graças a crise de alergia eu não conseguiria ler ou ouvir aulas, de modo que nem mesmo conseguiria assistir, já que a televisão estragou e não gosto de ver pelo notebook. Sem amigos para ligar e sem dinheiro para sair, o que mais eu poderia fazer?

Foi então a decisão simples de um homem que se viu sozinho. O velho Buck teria enchido a cara de cerveja ou whisky, e eu até tenho algumas garrafas de vinho guardadas, mas tampouco tinha disposição para abri-las. Enfim, minha opção foi pelo sono profundo, o que sempre tomo como uma espécie de antessala da morte, um prenúncio do fim. Enquanto para todos os outros a morte é um tabu e o suicídio é algo de revoltante, para mim é o que há de mais próximo de uma esperança: é a possibilidade de ver findar essa existência miserável, rodeado de pessoas miseráveis e eu mesmo sendo miserável, escrevendo infindáveis cartas de amor ao modo de Fernando Pessoa, isto é, ridículas. 

E as pessoas não cansam de mostrar eu estou certo ao pensar isso. Uns que só se preocupam com os títulos e receber bem as pessoas, patéticos, e outros que se preocupam com tudo o mais, onde tudo é interessante, mas que não percebem nada de realmente importante ou valioso. Não há como olhar para essa humanidade senão com desânimo e nojo. Como pôde Cristo sentir compaixão de nós quando cada ação humana implora pela destruição eterna?

Ele não se cansa de me mostrar o quanto somos diferentes. Enquanto penso nele, tudo o mais ocupa sua mente, tudo menos eu. Voltando então a minha esperança, assim como dormir um dia inteiro não faz com ninguém sinta minha falta, a ausência prolongada seria logo esquecida, substituída, assim como já hoje não ocupo a mente de ninguém. Até mesmo essas palavras se veriam subjugadas as areias do tempo, não veriam a luz jamais pelas páginas de um livro lido ao anoitecer, apenas se veriam gravadas nas paredes do Ser, onde ninguém jamais lê.

Ignora então o óbvio que pulula aos seus olhos. Explora as muitas possibilidades de fracassar e ser medíocre, a essas chances o homem nunca decepciona. Ignora o amor, ignora o saber, ignora a santidade, ignora a beleza, prenda-se a tudo que é passageiro, idiota, fugaz, prenda-se aos sonhos mais toscos enquanto ignora os campos elísios que se abrem diante de ti. Ignora a verdade que luta para não ver jamais. 

Melhor mesmo é dormir, sem ter hora para acordar. 

domingo, 26 de maio de 2024

Por esse ângulo

Olha como são as coisas, finalmente decidi negociar dívidas de alguns anos atrás, para limpar meu nome e conseguir um empréstimo para comprar umas coisas que preciso para dar continuidade com a minha pesquisa, e aí, quando parece que vai dar certo, vem o gasto inesperado com a televisão que começou a dar problema e, não parecendo, é uma prioridade, afinal é no mínimo injusto que eu trabalhe tanto e, nos poucos dias de descanso, não possa nem ver meus BLs de uma forma digna. 

Por falar em BLs, já tomei meus remédios e espero que façam efeito, depois de três dias sem dormir direito devido à insônia de um episódio de mania e ainda trabalhando direto, assisti ao episódio dessa semana de Only Boo, com o coração quentinho eu vou dormir. As cenas de momentos amorosos de Kang e Moo se multiplicam, e eu não sei como podem existir duas pessoas tão fofas. O Moo simplesmente não desgruda do Kang um segundo e, mesmo sendo sério, o mais velho deixa claro que ama toda essa atenção e recompensa o amorzinho dele sendo tão fofo quanto. 

E gosto não só da idealização de um amor tão romântico quanto perfeito, onde os sentimentos respeitam o tempo do amadurecimento de cada um e vão se abrindo a novas possibilidades, penetrando com amor cada pequena ação: seja comendo juntos, observando a paisagem ou se apoiando antes de uma prova importante. Além disso, da sutil forma como eles tratam de temas um pouco mais sérios, mas sem perder o frescor próprio da juventude e nem a delicada forma como eles se tratam. O medo da separação caso Moo falhasse no teste, o futuro incerto onde deveriam se separar até que ele terminasse a faculdade em outro país, a ansiedade que isso causou, mostrada de modo leve e, mais importante: contornada com o amor e o carinho compreensivo de Kang que gentilmente puxou o parceiro de voltar dizendo "ainda estamos aqui, vamos aproveitar cada momento, juntos." 

E, enquanto o Moo se divertia com muitos planos de casal para os dois, Kang apenas colocou um coração em sua lista: não importa o que ele faça, contanto que seja com Moo, o fará com amor, esse é seu único plano. 

Visto dessa forma o amor é realmente uma coisa linda... Desse ângulo parece perfeito e, naquele mundo, talvez seja mesmo.

Me deixe então esquecer do meu próprio amor e do mundo real, ao menos por essa tarde fria de domingo. 

Boa noite! 

sábado, 25 de maio de 2024

Aforismos

"Man Smoking A Pipe", Paul Cezanne

Tentando não sucumbir a loucura de ter a mente rodopiando em pensamentos por outro episódio eufórico. Tentando não falar demais, tentando não fazer mais dívidas, tentando não sucumbir ao corpo cansado, mesmo sabendo que boa parte desse cansaço é culpa minha. Mas eu também não tenho mais disposição para mudar de vida. 

Tentando, estou tentando. 

Será que estou mesmo tentando ou já desisti e só continuo andando por aí como cadáver adiado?

Acho que, na verdade mesmo, eu já desisti de mim há muito tempo. E, por alguma razão, só continuo, mas continuo ser ter para onde ir...

"Matamos o tempo; o tempo nos enterra." (Machado de Assis)

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Fiz um comentário bobo, sei disso, mas ele contém muita verdade. Você sabe disso. Tudo o que tenho a oferecer é amor, é tudo o que tenho, é tudo que restou, e não parece muito. Sinto por isso, queri poder te oferecer mais. Quem sabe algo próximo da aspiração intelectual que tens, queria poder te oferecer isso. Mas não posso, e sei que o que tenho, não é suficiente para você. De que serve esse meu amor? De que servem essas lágrimas? De que serve minhas mãos e meu hálito quente? De que serve esse meu amor? Posso me atrever a sonhar que tenha uma recaída comigo e não apenas em seus sonhos?

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Às vezes ficamos desolados, há momentos em que acreditamos estar no inferno, mas há ainda outras coisas, e melhores. Há três graus:

1° não amar e não ser amado
2° amar e não ser amado (é o meu caso)
3° amar e ser amado

(Vincent Van Gogh, Cartas a Théo)

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Não sei se concordo com Van Gogh, acho que, a essa altura da vida, com tantos dessabores pelo amor, prefiro que não pudesse mais ser capaz de amar. Ao menos evitaria essa dor. Ao menos poderia de fato olhar para o nada sem sentir nada, o nada que sofre por amor é um saco. O nada que se consome por amor é um saco. 

O vazio é um saco, 

mas o vazio sem amor é pior ainda. 

sexta-feira, 24 de maio de 2024

A descrição triste de um semideus

"(...) Cada um que se vai, foge um pouco da gente..." (João Gumarães Rosa)

Preciso voltar a escrever coisas simples, como aquilo que vejo e que me chama atenção, de algum modo. Já há alguns dias um rapaz tem me atraído no ônibus, o encontro quase todos os dias pela manhã. A aparência dele não daquela delicadeza que geralmente me atrai, mas pelo contrário, ele é bem másculo aos meus padrões. 

Tem a pele morena, quase o mesmo tom que o meu, e uma tez dura, isto é, os ângulos do rosto são bem marcados. Ele me lembra alguém que acaba de sair do exército, seja pela expressão séria, quase severa, de quem desaprova a minha delicadeza. Não que ele tenha realmente olhado para mim, acho que nas últimas três semanas ele me viu apenas de relance, hoje foi uma dessas vezes inclusive, isso porque ele dorme quase a viagem inteira, e acorda só para a baldeação, o que é um pouco engraçado. De todo modo, hoje me olhou muito brevemente, e eu desviei rápido, voltando o rosto para o livro à minha frente. Se é que ele já se deu conta da minha presença, talvez seja por isso: todas às vezes que estive perto dele, estava com um livro nas mãos. 

Teve uma vez que sentei ao seu lado, foi quando notei o corpo atlético pela primeira vez, daí a impressão de que talvez ele tenha estado no exército, isso somado ao cabelo extremamente curto. Ele usava uma camiseta regata nesse dia e os braços fortes, dobrados um sobre o outro, saltaram aos meus olhos. Tentando não encarar, eu me sentei ao seu lado. Por alguns instantes pensei que eles estava tentando me tocar, já que os dedos tocavam meu braço, flexionado por conta do livro, mas foi um engano. Ele apenas estava absorto em sono. De todo modo, seguimos viagem, ocasionalmente com as nossas peles se tocando e ele sem demonstrar desconforto com isso. A eletricidade que senti nesse toque foi apenas minha imaginação, e eu percebi que, dos rapazes que descrevi aqui, esse talvez tenha sido o texto menos doce e idealizado. 

Talvez o poeta dentro de mim esteja adormecido, ou morto. Será que voltarei a me encantar um dia?

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Tolices

"Satie Logis", Santago Rusiñol

Ah, como queria simplesmente poder chegar, passar um café e sentar, com a música baixinha preenchendo o ambiente. Não é pedir muito, ou é? Mas as pessoas insistem em me saturar de informações, de pé, antes mesmo de abrir a porta. Uma lástima. Suspiro fundo quando não estão olhando, e às vezes quando estão, para evitar falar de modo grosseiro.

Minha mente anda silenciosa ultimamente. Acho que finalmente consegui ignorar a maioria das coisas ao meu redor, de modo que tenho até mesmo evitado iniciar algumas conversas, porque sei que vão me dar trabalho. Não venho com disposição para longas conversas, não importa qual problema elas apresentem. As pessoas quando me procuram geralmente querem que eu resolva dificuldades que elas mesmas não querem resolver, e eu estou cansado de toda a burocracia que eles criaram ao redor de si mesmos, estou cansado das reuniões intermináveis, dos conselhos que conseguem tomar sempre as piores decisões, e de como tudo isso acaba voltando pra mim de algum modo. 

É com esse melancólico silêncio que venho passando as últimas semanas, desde aquela discussão com outra pessoa querida que se foi e que eu não fui mais atrás. Desde então tenho buscado ficar quieto, sozinho, de modo que não me incomodem e nem se incomodem comigo. E então eu apenas os olhos, com olhar vazio e distante, e observo eles desfiarem seus rosários de utopias e crenças, enquanto eu vejo a inutilidade de tudo isso. 

Realmente é triste ver como se reduziu a inteligência das pessoas, incapazes de ordenar prioridades e enxergarem além. Internalizaram a burocracia do Estado na Igreja e agora os fiéis agem mais como funcionários de uma repartição pública do que como pessoas que compartilham uma fé. É deplorável. 

Não quero me colocar acima dessas pessoas, arrogantemente me julgando superior, mas é difícil continuar insistindo e ver como continuam repetindo os mesmos erros não por ignorância, mas porque preferem fazer aquilo que acham melhor, ignorando completamente todo o ensinamento por trás de cada uma de suas ações. Logo, não sou eu que me julgo superior a elas, são elas que se julgam superiores à Igreja e que não precisam de nenhum modo obedecer ou aprender com os cristãos de outros tempos. É triste ver como os tesouros tão divinos simplesmente desperdiçados porque os cristãos de hoje acham que não precisam aprender com ninguém. 

Mas são tolos à sua maneira. E eu à minha.

Como sei que é tolice esperar que peça que eu fique. Foi apenas um breve pensamento, um daqueles toscos que, com um aceno da mão, como se o gesto pudesse afastar a ideia, eu lancei para longe.

Termino esse dia, que não foi dos melhores, mas também não foi ruim, indo dormir contra minha vontade. Isso porque não quero dormir, mas tampouco quero ficar acordado. E já são quase 21 horas, não é tão cedo assim. Olho no espelho, um homem cansado me encarando de volta. Devia fazer a barba, uma limpeza de pele, ser mais assíduo com os cuidados faciais, devia emagrecer, usar mais protetor solar, fazer alguns exercícios, procurar um corte de cabelo que combine mais, aparar as sobrancelhas. Depilar pernas e bumbum, onde também devia tratar a acne. Então fecho os olhos pra não machucar minha mão socando o espelho. Enfim, ninguém pediu que eu ficasse acordado, ninguém me avisou que eles voltariam a morar com a gente, e não me ocorre nada belo o bastante para me manter de pé, então eu apago a luz e vou dormir. 

"O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo. Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza." (Fiódor Dostoiévski)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Meditações Noturnas

"Moonlight Night. Meditation", 1876 - Arkhip Kuindzhi

"Das pessoas, eu esperava o bem divino e o medonho diabólico; da vida, esperava a beleza encantadora e o abominável, e dominava-me uma ânsia por tudo isto, um profundo e angustioso anseio pela realidade distante, pela vivência, qualquer que fosse o tipo, pela felicidade inebriantemente magnífica e pelo sofrimento indizível, insuspeitadamente terrível." (Thomas Mann)

Chegaríamos em casa num fim de tarde, no inverno abriríamos um vinho enquanto cozinhamos algo juntos e conversamos sobre o dia, talvez assistiríamos a um filme ou ficaríamos deitados no escuro, a música baixinha no embalando até o sono. No verão talvez ficássemos mais animados na sacada, com uma cerveja gelada, pediríamos comida e dormiríamos no ar-condicionado. 

Sei que não é um pensamento ambicioso, francamente não os tenho mais, mas, em se tratando de mim, este é o cenário mais utópico possível.

Os grandes sistemas de domínio global já terão colocado seus tentáculos ao redor de todas as nossas consciências. As grandes religiões não mais servirão de contato com o divino transcendente senão que serão como antessalas e mecanismos de dominação de grande potentados financeiros. Todo resquício de conhecimento profundo e verdadeiro será substituído por um simulacro de espiritualidade raso. A mentalidade das pessoas estará mergulhada numa confusão sem precedentes que fará surgir alguns espíritos altivos, uma multidão de santos a despertar desse sono profundo, provocando por gigantes cujos nomes desconhecemos. 

Mas eu já não estarei aqui para ver essa multidão de santos, farei o meu pequeno trabalho: rezarei pela salvação daqueles que amo. Se puder ajudar um deles que seja, já estarei bastante grato. Talvez me restem apenas esses dois pensamentos, esse quase evanescente, de uma realidade impossível, onde abriríamos um vinho e sorriríamos juntos, e esse, de um futuro difícil, que há de provar no fogo os homens de verdadeira boa vontade. 

"A cada um a sua inclinação: a cada um também o seu objetivo, sua ambição, se quiserem, seu gosto mais secreto e seu mais claro ideal. O meu estava contido na palavra beleza, tão difícil de definir, apesar de todas as evidências dos sentidos e dos olhos." (Marguerite Yourcenar)

terça-feira, 21 de maio de 2024

Um sonho

Malcolm Liepke

Foi apenas um sonho, mas passei o dia inteiro pensando nisso, nessa sensação que pareceu tão verdadeira. Ainda sinto a mão dele, quente, pequena e suada, segurando a minha com força, durante aquele dia caótico e, naquela noite, ao olhar em meus olhos antes do doce adormecer... Me emociono quando penso nisso, e olho para minha mão, pensando se um dia poderei segurar a mão dele de verdade, talvez num passeio de verdade e, ao dormir, ao lado dele de verdade.

Estou excepcionalmente melancólico hoje, excepcionalmente, pois já o sou normalmente, mas hoje acho que superei minha própria cota. Bem, não acho que exista um limite pra quanta poesia cabe no coração de um homem para sobreviver a esse mundo, aos amores, mas de todo modo até eu me surpreendi quando, no meio de um evento cheio de pessoas, com minha atenção dividida em meia dúzia de coisas, eu lá estava, de olhos marejados, a me recordar de um sonho, logo eu que dificilmente me lembro deles. 

Pensei que pudesse ser efeito do dia chuvoso. Quando o pessoal da meteorologia anunciou um grande volume de chuva para hoje eu pensei que seria daquelas chuvas torrenciais, que alagam tudo em questão de poucos minutos, mas não, o que aconteceu foi uma ininterrupta chuva que insistentemente caiu o dia todo, pintando toda a cidade de um cinza triste, bem, melancólico.

E enquanto voltava para casa, o vento frio me incomodando as minhas mãos, nuas enquanto o resto do meu corpo estava envolto por três camadas de roupa, e a chuva continuava caindo tristemente, alguma coisa numa loja de decoração, já fechada num sábado onde apenas quem era obrigado a trabalhar saiu de casa a pé, me fez imaginar a decoração de um quarto aconchegante, algo talvez iluminado por uma confortável luz amarela, e alguns objetos, como luminárias engraçadas de personagens de Mr. PacMan e livros espalhados, e talvez um estilo diferente de música toda noite ao dormir. Mas será que eu poderia dormir segurando a mão dele?

"O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua."

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Allegro con fuoco

Os primeiros compassos, fortes e marcantes, do último movimento da Sinfonia N° 9 do Dvorak ecoam na minha mente: estão entre meus momentos favoritos em toda a música ocidental, especialmente naquelas gravações conduzidas pelo Herbert von Karajan, com aquela intensidade e exibicionismo tão presentes no maestro austríaco. 

Estou tentando não pensar muito na longa lista de problemas que precisei resolver nos últimos dois dias, culminando em outra estafa por conta da abundância de informações envolvidas. Nem mesmo uma crise alérgica foi suficiente para fazer as pessoas ao meu redor darem um tempo. Na realidade eu já desisti de tentar fazer quem quer que seja entender qualquer coisa. Não adianta. 

Fiquei um bom tempo procurando as palavras certas para o parágrafo anterior, o movimento da Sinfonia do Novo Mundo já se encontra na metade, repetindo o tema que o abriu. Vou repetindo devagarzinho os gestos do grande regente, meu rosto dói devido à sinusite, meus olhos lacrimejam e estou usando um emplastro medicinal na bochecha. Como podem ser tão obtusos assim? Cara essa música é fantástica e a força dos metais é fenomenal. 

Espero poder chegar logo em casa, 

ou apenas sair daqui, 

ou apenas ficar sozinho, 

ou apenas dormir. 

Essa coda é simplesmente sensacional. Apoteótica.

Todos ao alcance do meu olhar no momento são imbecis. Eu provavelmente sou pior que eles por continuar aqui. 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Um jeito imperfeito de ver

"O mundo no qual nós penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de temperamento." (Carl G. Jung)

Eu queria, queria mesmo, ver a vida com outros olhos. Conseguir enxergar a beleza da natureza, por exemplo, e buscar nela uma razão de ser, ter um sonho que fosse. Queria olhar a ternura de uma flor que desabrochou, um regato fresco, até mesmo a imponência do oceano e desejar aquela beleza, desejar que ela se impregne em mim de tal modo que eu deseje sempre mais e, admirando as coias que passam possa aspirar as que não passam. 

Mas eu não consigo. 

Se fecho os olhos eu não tenho sonho a realizar, não há desejo profundo, nem silencioso ou secreto. Apenas não há. Não há algo que eu queira, ser ou conquistar, todos meus sonhos morreram um a um, e fui ficando, cada vez mais só, mais distante, mais vazio. Um homem que já não é capaz de sonhar, um cadáver adiado. 

E eu queria ser mais do que isso para você. 

Mas isso seria um sonho? 

Acredito que não, porque há muito também percebi que não posso sonhar em caminhar com você se isso é impossível de realizar. 

E sei que a minha insegurança, convertida em pessimismo, é um fardo. Mas, fui trocado mais vezes do que consigo me lembrar, e isso acabou deixando uma ferida permanentemente aberta no meu peito.

Eu acho que então eu só não queria ser motivo de incômodo para alguém que eu amo. Porque se algo ficou dentro dessa casca que me tornei, foi o meu amor por você. 

"Amo o amor dos marinheiros
que beijam e se vão.
Deixam uma promessa, 
não voltam nunca mais."

(Pablo Neruda)

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Do vazio que eles não enxergam

Amor, hoje o teu nome
dos meus lábios fugiu
como ao pé o último degrau

Já não consigo mais sustentar a máscara que criei, ela se partiu e agora seus cacos estão partidos pelo chão. Acontece que não consigo mais fingir sorrisos, não consigo mais nem mesmo dizer que tudo vai bem quando, meu corpo e minha mente, se encontram no limite. 

Mas Gabriel, ainda continua no limite mesmo após diminuir o ritmo e de descansar mais? É que, o que eu tenho, não é apenas um cansaço. É um profundo descontentamento com a existência mesma, e isso me causou uma desilusão tal que parece que nada mais vai me devolver a alegria de viver. 

Me lembro de sorrisos alegres, de como mentia para todos, agora parece que finalmente conseguem ver meus olhos apáticos, cansados, vazios, cheios de rancor. Mas todos acham que isso é apenas mau-humor, não é novidade que se enganem, afinal, eu nunca fui visto de verdade, ninguém nunca conseguiu ver que aquele sorriso era, na verdade, uma máscara e que meu olhar distante agora é sinal de uma alma cansada, um coração partido.

Mas eles não entendem, nem de máscaras, olhares, de almas ou de corações. Eles não entendem nada. Então eu, sem máscara, saio e deixo que todos vejam esse olhar opaco, e que interpretem como queiram, já que, não entendendo também de palavras, eles não entendem também o que digo, e que repeti tantas e tantas vezes. 

Até poderia dizer, de novo, que quero um abraço ou algo assim, mas seria em vão. É sempre em vão. Eu não posso te tocar, seu coração pode até bater, mas eu não consigo sentir. Do lá de cá o meu continua batendo, pouco a pouco ficando mais e mais lento.

"Estou cansado, não consigo pensar em nada e quero apenas colocar o meu rosto no teu colo, sentir a tua mão na minha cabeça e permanecer assim durante toda a eternidade." (Franz Kafka)

terça-feira, 14 de maio de 2024

Boa Noite

Ele, um amigo dessa vez, porque preciso começar a diferenciar quando digo algo assim, já que muitas vezes me refiro a pessoas completamente diferentes em textos próximos e parece que quero amar e bater na mesma pessoa, lapso meu, mas não sei resolver isso ainda. Talvez uma forma de ver isso é que, na realidade, quando falo Nele, em real estou falando de algo em mim que vejo vir à tona por ter visto no outro, sendo assim, não importando quem seja o Ele em questão, trata-se sempre de um aspecto de mim.

Enfim, depois desse excurso, ele, um amigo, me perguntou se iria dormir. É segunda, minha folga, e já assisti algumas aulas sobre eclesiologia moderna, fiz a barba e não me restou ânimo pra arrumar as unhas também, portanto decidi dormir, aumentando um pouco a dose do meu habitual coquetel de remédios para dormir. 

Não vejo razão para continuar acordado. Vou deixar todos da paróquia sem resposta, depois desse fim de semana, de shows e invencionices nas missas em "homenagem" às mães eu desisti. Sabia que minhas formações não vinham servindo pra muita coisa, mas as pessoas não querem liturgia, não querem celebrar outra coisa senão a si mesmas, numa autolatria ou, de certo modo, autofagia. Lamentavelmente não há nada que eu possa fazer. Então que, ao menos, me deixem em paz!

E quanto aos outros aspectos, estou tentando não pensar muito neles. Vou voltar ao trabalho, vão sugar o que puder de mim como parasitas, se estou um pouco dolorido ou distraído vão dizer que estou nervoso, sem perceber que, na verdade, estou assim porque tenho sempre que resolver problemas que poderiam muito bem resolver sem mim e que só querem sugar o máximo que podem. 

Então, se tenho pelo menos um dia miserável de folga, que possa dormir sem que me perturbem. Que fiquem com o seu deus do Eu, eu não tenho nada a ver com isso. Já com relação a ele, tem muito no que pensar, e nisso ocupo um posto perto de suas últimas prioridades, portanto não sou para ele mais do que um desconhecido, ao passo que meu amor não é aqui algo que para ele tem a importância que tem em mim. 

Logo, se não há amor, se não há Deus, se não há respeito, não há razão nenhuma para ficar acordado.

Boa noite.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Um vulto

"Sinto que sou ninguém salvo uma sombra de um vulto que não vejo e que me assombra, e em nada existo como a treva fria." (Álvaro de Campos)

Quero ficar quietinho, sozinho, em silêncio, sem absorver nada. Até disse a um amigo que queria me isolar na minha bolha, e apenas isso. Minha mente está em confusão, e não quero pensar em amar, ser amado, e nem nos problemas da paróquia, nada disso, só quero ficar quieto. Até quando? Não sei. 

Vou pegar mais uma caneca de café para me aquecer um pouco, pois finalmente o clima esfriou, mas também meu coração se arrefeceu. 

Primeiro veio a tristeza profunda, depois das palavras cruéis dele, depois a revolta, a violência e, agora, a apatia. Questiono quais partes da minha personalidade realmente preciso melhorar e o que foi injustamente atacado com violência. Mas não chego e nenhuma conclusão ao pensar nisso. O olhar para o nada esperando que algo aconteça, que algo talvez caia do céu, ou nada também. 

Um silencioso protesto do meu ser contra o próprio ser. 

Eles não entendem. Não é que eu esteja nervoso ou algo assim. Também não estou calmo. A questão é exatamente que não estou. 

Apenas estou me silenciando, mais e mais, e me fechando cada vez mais. 

Como explicar a eles então essa ausência do ser? 

Ou seria um peso excessivo do ser?

É, espero que o café me aqueça. 

sábado, 11 de maio de 2024

Tarde demais

"Por isso eu tomo ópio. É um remédio. Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento e ver passar a Vida faz-me tédio" (Álvaro de Campos)

Você é um grande idiota, isso sim! Enquanto eu tentava, a todo custo, vencer suas barreiras e me aproximar, você era apenas indiferentismo, e então se mostrou violento, como animal ameaçado. Um grande imbecil, e pensar que, mesmo depois de todos esses anos, ainda tinha em minha mente aquela visão de você calmo e choroso perto de mim, querendo me agradar, dizendo que queria ser meu amigo. Quando foi que se tornou esse idiota? É certo que já faz muitos anos que não o vejo, mas tenho certeza que aquele olhar, aquele olhar gentil de antes, desapareceu em meio a essa arrogância. 

E então olho para a minha mesa, e vejo os frascos cor de âmbar com tinturas de colônia, valeriana e outras plantas que aquela senhora preparou para mim, e em nenhum momento eu tentei me aproximar dela, e ela cuida de mim com esse carinho, como se fosse minha mãe, e me aconselha a descansar, a me cuidar enquanto é tempo. 

Engraçado, e digo isso de um modo mórbido, como algumas vezes recebo hostilidade praticamente gratuita em troca do carinho que dei e, outras vezes, recebemos cuidado de onde menos esperamos. 

Só é uma pena que talvez seja tarde demais. E o talvez tem nessa frase efeito eufemístico: definitivamente é tarde demais para mim. Já sinto no meu corpo os efeitos de todos aqueles remédios, inclusive os que acabei de tomar na esperança de dormir um sono pesado e não pensar naquele grande idiota.

Ontem em meio aos estranhos no ônibus eu chorava, e chorei baixinho até dormir também, mas o que era tristeza pouco a pouco se transforma aqui dentro em revolta, e se antes queria acariciá-lo e protegê-lo de um mundo que não o via e que o assustava enquanto apenas eu o via tão bonito mas tão fechado em si mesmo, agora quero mais o esmurrar até que essa ira se vá. E então, com a cara dele cheia de sangue, quem sabe eu me sinta um pouco melhor, ou talvez um pouco menos do que o lixo que me sinto agora. 

É, com certeza é tarde demais. 

Já me encontro nos umbrais da condenação eterna…  

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Espera

"Boiam leves, desatentos, meus pensamentos de mágoa, como, no sono dos ventos, as algas, cabelos lentos do corpo morto das águas." (Álvaro de Campos)

Ontem mais uma vez eu dormi pedindo e chorando baixinho que não acordasse, mas cá estou eu mais um dia.

Considero o dia após esses episódios mais agudos como uma espécie de ressaca, algo como uma ressaca moral talvez. Sinto a mente pesada, e é claro que nesses dias parece que as pessoas adivinham e exigem ainda mais de mim. 

Fico ainda mais melancólico que de costume, o que em alguns pontos pode ser uma coisa boa, como perceber o óbvio que vinha ignorando, que todos ao meu redor também estão passando por alguma coisa, e que geralmente não comentamos. Ao chegar em casa eu até noto os semblantes tristes, achei que fosse apenas a crise financeira pela qual temos passado atualmente, mas era mais do que isso, tem uma gama de nuances que eu não tinha percebido e que tem se somado, resultando que todos estão no limite, de algum modo. 

Vejo a depressão, a minha e de outros ao redor, e vejo um mundo cruel. Duro e cruel. Que esmaga todos em sua impiedade. 

E ela me esmagou. Me colocou sob seus pés. 

E não há nada que eu possa fazer, 

além de fechar os olhos, 

em silêncio, 

e esperar que acabe

tudo.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

O Idiota

Outra ciclagem nesse inferno. Ainda nos últimos dias eu estava quase prostrado, irritado com tudo e todos, depois, no sábado, me veio uma euforia que só não se estendeu até o domingo porque precisei usar uma quantidade absurda de remédios para alergia, mas ainda permanecia aquela inquietude típica dessa fase. E então, depois veio a depressão junto ao cansaço da crise alérgica. Hoje, um episódio misto marcando nova ciclagem, não há corpo que aguente… 

Outra ciclagem nesse inferno. É sempre assim. A depressão que me deixa prostrado, como que um cadáver adiado e a euforia, que me faz ficar inquieto, e falar demais, e dar em cima dos caras e querer transar loucamente, ainda que sejam dez da manhã com um desconhecido no banheiro de um terminal do outro lado da cidade. É sempre assim. Ou sem desejo nenhum, ou pior que um ator pornô. Celibatário ou tarado, mas sempre, sempre, um idiota, nojento e desprezível. 

O dia está até bonito, apesar de quente não está úmido, afinal é outono, mas ainda assim eu não quero estar lá fora, mas também não quero ficar aqui enfurnado no escritório congelando no ar, também não quero ir para casa, embora queira dormir, mas só pelo prazer de não ver e nem interagir com nada, nem ninguém.  

Me vem tremores, os ânimos ficam exaltados. Queria não ser assim, tão volátil, mudando sempre tão rápido. Inconstante, imprevisível, uma bomba de efeito retardado.

E então percebo que de novo estou querendo me refugiar no sono. Ontem fiquei feliz por poder chegar em casa e simplesmente ficar deitado esperando que ele chegasse, e hoje já me vejo inquieto para fazer o mesmo, ignorando que tenho uma reunião que esperam que eu vá, ignorando que preciso ficar acordado ao menos uma hora em casa, estudar um pouco que seja…  Mas eu não queria nada disso, eu só queria voltar ao nada. 

É isso que me faz ser um grande idiota, falar demais, não saber a hora de parar. Como as pessoas aguentam outras assim o tempo todo? Não aguentam, e então explodem, como aconteceu comigo, mais uma vez, com uma das pessoas por quem mais tenho carinho. É isso que me faz ser um grande imbecil, desprezível e que por isso, por ser tão bizarramente estranho, está condenado a ficar sozinho para sempre, sempre, sempre, um idiota, nojento e desprezível. 

E essa dor de cabeça não diminui, e eu fiquei envergonhado, mesmo estando do outro lado do país, desejando que houvesse um jeito de não ser assim, de não me humilhar tanto, de não ser tão boçal. Mas eu sou, eu sou desprezível e por isso todos me desprezam. 

Por isso eu deveria me calar, e desaparecer. Seria melhor para todos. 

Eu deveria me calar de uma vez por todas.

Seria o melhor para um idiota nojento desprezível.

Pranteariam meu cadáver sorrindo, todos eles, e diriam entre si: como ele foi um nojento desprezível!

Vontade em ruínas

La Palude, Roberto Ferri

"E os sentimentos humanos foram-se esmaecendo mais e mais, e a cada dia que passava alguma coisa se perdia nessa já hasta ruína." (Nikolai Gógol)

Mais um dia, dentre tantos outros sobre os quais também escrevi, em que só espero ansioso pelo momento de poder voltar a dormir, profundamente, sem nenhum outro compromisso com a realidade. Mas, digamos que tenha visto essas páginas pela primeira e se pergunta: donde vem todo esse pessimismo, toda essa visão quase niilista que tanto te aflige?

Bom, a resposta é que, por tantas e tantas vezes, ao olhar o mundo ao redor e ver coisas como a prevalência da malícia sobre a inteligência, da completa falta de sentido no sofrimento ao passo que o mesmo sofrimento se faz cada dia mais e mais presente, e das mais diversas ordens, de um sofrimento profundo e verdadeiro, como de quem perdeu tudo numa enchente, como o meu, algo como um sofrimento intelectual pela absoluta completa e total banalidade do meio em que vivo, de um meio preocupado com dinheiro e aparências, de um meio onde se mente sobre estar preocupado com o outro, de um meio que se deixa corromper por promessas fáceis de sucesso em diversos campos quando, na esmagadora maioria das vezes, todas as pessoas jamais deixarão de medíocres. 

É olhar ao redor e, pior ainda, para dentro de mim mesmo, e não ver nenhuma possibilidade de melhoria, isto é, de crescimento. É como se os grandes sábios, santos e profetas tivessem ficado no passado. Não ficaram, disso eu sei, mas não os vejo andando por aí com frequência. Daí que continuar lutando bravamente pela virtude num mundo como esse parece-me um cansaço muito grande. Mas esse não é o ponto principal, já que uma das virtudes é justamente lutar pela graça quando tudo mais parece perdido. 

O ponto principal é de outra ordem: é que fui tão traído e machucado, e já tive que me reerguer depois de abandonado tantas e tantas vezes, que não sobrou no meu frágil corpo e nem na minha alma corrompida, a força necessária para buscar qualquer coisa que seja, virtude ou pecado, senão que essa sucessão de dores, de desamores, de destruições quando eu nem estava ainda totalmente de pé, a cada amor que perdia e que me diziam para esperar pelo próximo, e o próximo, e o próximo, isso me foi enchendo de uma desesperança tal que, quando me olho no espelho ou olho ao meu redor, não vejo senão a destruição, o que me enche de uma vontade tremenda de voltar ao nada.

É por isso, o meu olhar frio, distante, de quem olha para o todo e não vê nada além de ruínas. 

NÃO, NÃO É CANSAÇO…

Não, não é cansaço…
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo…

Não, cansaço não é…
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como…
Sim, ou por sofrer como…
Isso mesmo, como…

Como quê?…
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!…

Álvaro de Campos

Não, não é cansaço caro Álvaro, mas eu bem queria um lugar pra descansar...

terça-feira, 7 de maio de 2024

Perdido entre livros

"The Reader", Ferdinand Hodler

Você até pediu a Deus que me ajudasse a te entender, e peço perdão por ser tão insistente, mas eu entendi, e confesso que lutei para não ficar pensando demais, para não ficar buscando significados ocultos, intenções nas entrelinhas ou coisas desse tipo. Não, tentei não pensar em nada disso e acordei com essa resolução ainda forte no meu peito. Foi só agora a tarde, enquanto fuçava um acervo cheio de quadros empoeirados que, por alguma razão, me veio um daqueles arroubos, e meu peito se encheu e eu só conseguia pensar no quanto te amo. Nada mais importava, e eu sorri discretamente para mim mesmo. Você conseguiu sentir daí?

Aproveitando esse breve anuviar das ideias por conta da minha dopada candura em tomar vários remédios para dormir ao mesmo tempo. Necessário depois da crise brutal de alergia que tive ontem, é o mínimo que mereço, já que o salário nem deu para pagar todas as dívidas e vou ter que sobreviver o mês inteiro com o que sobrou do cartão de crédito, e é isso. 

Vou dormir porque amanhã começa tudo de novo, o enésimo suplício. Não vou fazer a barba, nem cortas as unhas, tampouco cuidar da pele, vou apenas dormir porque hoje, isso é tudo e tão somente o que meu corpo, coração e mente aguentam.

Vou dormir porque amanhã começa tudo de novo, o enésimo suplício. Não vou fazer a barba, nem cortas as unhas, tampouco cuidar da pele, vou apenas dormir porque hoje, isso é tudo e tão somente o que meu corpo, coração e mente aguentam.

Me lembro de uma cena daquela série, em que dizem entre si: "Eu finjo que não vivo aqui" e a outra responde "Todo mundo, cê acha que alguém aguenta enfrentar essa realidade? Eu me apoio no Gin que é uma bebida que me dá muito suporte, mas e o resto das pessoas?" Eu me apoio no sono, do doce, escuro e silencioso sono.

Tenho me sentido bem perdido. Não sei se é efeito de uma ciclagem, não sei se estou ficado eufórico ou depressivo, esse meio-termo é sempre complicado de entender, ou se é do trabalho que realmente me deixado confuso, ou uma junção das duas coisas. 

Ou é a vida, que me deixa assim, 
perdido.

"Tenho uma casa em
Honan, com um laguinho
azul, todo cercado de
bambu.

E estou aqui
dissipando minha vida,
gastando meu cérebro
nos livros sagrados..."

(Giacomo Puccini)

segunda-feira, 6 de maio de 2024

O Ermitão

St. Paul at his Writing Desk, Rembrandt

"O segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão." (Gabriel García Márquez)

Grande sabedoria essa que o escritor do realismo fantástico conseguiu imprimir em tão poucas palavras. Grande futilidade a minha ao perceber o quão longe estou de estar pactuado com a solidão, embora ela seja minha companheira mais fiel. E eu percebo isso em dias como esse, em que sinto como o pesar de uma velhice que ainda não chegou, olhando para o mundo ao redor com tamanha apatia e desinteresse que poderiam julgar que já vi de tudo e, tendo uma longa e agitada vida, agora contemplo a solitária velhice em tédio profundo. Não o vivi, isso é fato, mas é também verdade que nada no mundo, afora o amor não correspondido, me chama atenção, de resto nada mais me agrada, para nada e nem ninguém me volto com real atenção quando chamam meu nome. Eu simplesmente os olho com apatia, enquanto ignoro seus votos de que eu melhore, ou quando me pedem para me animar. 

Eles olham longe, fazem planos e mais planos para o futuro, não percebem que estão apaixonados por uma miragem, alimentam sonhos que crescem como monstros que os devorarão depois. Acreditam em mentiras como o amor, a família, a justiça, a bondade. Ou se enganam que acreditam, não acho que alguém de fato acredite nisso, mas, aceitar essa verdade é tão dolorida aos mais jovens, que eles então se refugiam em seus sorrisos, e então me pedem para lançar longe o desânimo, para me contentar com meu corpo jovem e sadio, para sorrir. Eles não percebem.

Não estou desanimado, não estou triste. 

O que eu tenho, se é que isso tem um nome, senão que apenas posso balbuciar uma conceituação, é um profundo desgosto pelo ser mesmo. Não é que eu apenas não queria estar aqui, ou lá, hoje, não. Em verdade gostaria de poder não estar. Me contentaria se, com fumaça, me desfizesse ao menor sopro de vento. 

Mas, enquanto isso não acontece, sou como ancião que viveu todas as eras, observando o nascimento e morte dos grandes nomes, das grandes potências, de tudo que faz o homem se sentir importante, e então, tendo visto como as coisas silenciosamente se desfazem e chegam a parecer como se jamais tivessem existido, como os grandes viram pó tanto quanto os célebres desconhecidos, eu observo a tudo e a todos com olhar descrente, distante, apático, com uma certeza profunda no coração: essa realidade, o ser, a existência, tudo isso é uma desgraça. 

Essa resolução advém então de um profundo descontentamento com o mundo mesmo, e como a terra seca onde um dia já correu um rio. 

Terra seca, pois as águas de amor que um dia ali brotavam e corriam, se foram, se perderam, não voltam mais. 

Terra árida,

coração seco.

Escrevo como um velho ermitão da montanha, com o papiro alumiado por umas ceras que logo se dissiparão, já não forço a vista, não há nada que valha a pena ser visto. 

Espero logo me apagar como essas velas que me deixam mergulhado em profunda escuridão.

"Em dias mais jovens, de manhã eu ria
De tarde chorava; agora, já mais velho,
Começo o meu dia em dúvidas, porém
Sagrado e sereno me é o seu final."

(Friedrich Holderlin)

sábado, 4 de maio de 2024

Abertura de Consciência

Esse texto é apenas uma tentativa de te ajudar e, sendo assunto tão complicado, é como um aceno, um esforço que faço, como seu padrinho e amigo, a superar uma vida de consciência tão pesada que eu mesmo causei, portanto, peço, antes de tudo, que me perdoe a limitação e que Deus me ajude a não comete nenhuma injustiça. 

Na minha última reflexão apelei a uma consciência para a respiração, bem como sua simbologia profunda, tão antiga que inclusive se encontra até mesmo nas crenças pagãs, apelando aqui a Santo Agostinho que disse "Nam res ipsa, quae nunca christiana religio nuncupatur, erat apud antiquos nex defuit ab initio generis humani." (Pois a que agora se chama de religião cristã estava entre os antigos, e não faltou desde o começo do gênero humano).*

O meu ponto principal a ser desenvolvido é justamente o da consciência, da percepção que se abre e que amadurece, o que São Paulo se refere que "quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança e pensava como criança. Agora que sou adulto, parei de agir como criança. O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face" (1Cr 13, 11-13), isto significa, é dever do cristão amadurecer em sabedoria conforme a graça que nos é dada nos sacramentos, especialmente a Confissão e a Eucaristia. 

O que acontece é que a prática da confissão, no sentido sacramental, deve ser acompanhada de um constante exame de consciência, não feito apenas antes da confissão em si, mas que só pode se dar por meio de uma abertura real para a graça santificante. Assim como no artigo anterior me referi a uma realidade que sua consciência ainda não tinha adquirido, assim também como toda conversão é a tomada de consciência de uma realidade que antes não tínhamos, ou tínhamos apenas em potência, a saber: a passagem do pecado para a graça. 

Mas em que tem a ver uma coisa com a outra? É que uma consciência limitada é sempre angustiada em si, isto é, o pecador cai no erro de pensar não no perdão que lhe é oferecido, mas apenas se desespera do pecado cometido ou, pior ainda, do pecado possível. Aqui o eixo de atenção é deslocado: já não se pensa mais em Deus, mas no pecado. Há, portanto, linha tênue entre a preocupação em andar na graça e o risco de cair nos escrúpulos que causam desespero. Como equacionar isso então?

A abertura de consciência, o amadurecimento intelectual, possibilita que enxerguemos não os pecados enumerados como que em lista, tal como se apresentam no catecismo e nos manuais de confissão, inclusive no que eu mesmo enviei a você, mas passamos a ver as raízes mais profundas do pecado que permanecem em nós como concupiscência, raízes estas que, não raramente, fazem com que assumamos comportamento distante de Deus justamente por nos fazer pensar mais no pecado do que na graça de Deus, sendo que a elevação da consciência não se detém nem mesmo na graça de Deus, mas numa contemplação posterior, do próprio Deus, o que São João da Cruz explicou com muito mais eficiência do que eu posso fazer. 

Então estou dizendo que os manuais de confissão estão errados e que o catecismo também ao enumerar os pecados? Não, eles o fazem justamente para mostrar, de forma mais sistemática, aquilo que Santo Agostinho o fez nas suas Confissões: a busca de uma abertura tão grande para a ação divina que nos mostre as raízes de nossos pecados e como eles podem se mostrar nas ações mais toscas, como na masturbação ou no olhar luxurioso. Isso significa dizer que essas listas são, na verdade, a ponta do iceberg, mas que não devemos nos fixar a elas somente. 

Mas se há coisas ainda mais profundas, há ainda mais pecados a serem descobertos? Sim e não. Mais uma vez recorro a Santo Agostinho, que diz que os pecados são feitos da mesma matéria que as virtudes, algo que Chesterton, para apontar um autor mais próximo de você, também o disse ao mostrar que o mundo, na verdade, se encontra em decadência por conta das virtudes cristãs enlouquecidas. Isso significa que o passar do pecado para a graça, que se manifesta sacramentalmente na confissão como marco, se dá, na verdade, como uma longa transmutação alquímica que se dá na alma, no Eu do cristão. Isto é, na contemplação da plenitude de Deus a nossa mancha se torna tão evidente que então nos conformamos a ela, mas se focamos apenas nas nossas manchas, estamos como que de cabeça baixa, sem saber o que há ao nosso redor, que nos abarca e transcende infinitamente.

Se as coisas são como descreveu o Bispo de Hipona, quer dizer que devemos buscar a raiz do pecado e transformar em algo bom. Não no sentido superficial como, o que na pornografia pode ser bom? Não, mas o que foi o conjunto de coisas que nos levou a pornografia e que se encontra tão profundo em nós que já nem mesmo percebemos? Há coisas que devem ser mudadas na base, outras que precisam apenas de uma aplicação melhor. 

Portanto, a minha argumentação é esta: a contemplação de Deus em sua totalidade, que se dá por meio da abertura aos atributos divinos, ou seja, ao que é bom, belo e verdadeiro. Tenhamos em mente que Deus é perfeitamente Bom, sumamente Belo e ele é a própria Verdade, por isso, tudo que há de bom, belo, justo e verdadeiro, nos personagens da literatura, na vida dos santos, na sabedoria da filosofia e da teologia, está dado perfeitamente em Deus, então ao se abrir a essas imagens, elas apontam a perfeição de que são reflexos, como o hino dos três jovens na fornalha ardente, e o cântico das criaturas de São Francisco, que exaltam o que de belo há no mundo criado por Deus. 

A minha proposta, imensamente difícil reconheço, é a abertura, a esses tesouros, e não a contemplação dos seus pecados ou das suas possibilidades de pecar que, em verdade, te fecham e te afastam de Deus. Que os instrumentos da Igreja o ajudem a abrir a consciência, mas não que te façam se acostumar a uma confissão infantil, que apenas enumera pecados como quem paga boletos e pega recibos em troca, mas que apontem as realidades profundas que em ti precisam ser modificadas. E por isso Santo Agostinho é um exemplo tão grandioso, pois, ao demonstrar em suas Confissões, muito mais do que listas de pecados, mas uma abertura a Deus tão imensa que lhe fez perceber até aos pecados cometidos na mais tenra idade. Mas ele não se fixou nisso, senão que usou para executar essa transmutação profunda, e transformar o pecado em ensinamento perene, tão importante que, cá estou eu, falando da graça alcançada por Santo Agostinho, tantos séculos após sua morte corporal, e não dos seus pecados. 

Mas, o que em verdade tenho tentado dizer e que gastei tanta tinta e ainda não consegui é o conselho sintetizado por S. Pe. Pio: "Reze e não se preocupe!" 

~

*Retratactiones, I, cap. 13.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

A Respiração do Universo

É preciso que eu primeiro consiga silenciar o meu próprio coração, muito embora a agitação do mundo torne isso quase impossível, antes que consiga lhe explicar algo. 

Eis o que quis dizer ao me referir ao ritmo constante que você apontou na música como sendo "o ritmo do universo." Desde os tempos mais primórdios, e inda hoje, o homem se encanta e se espanta com o mundo que o rodeia, e da observação desse mundo ele tenta apreender algo, como que compreender o funcionamento do todo, dos mais diversos modos, hoje pelo funcionamento das partes, com a ciência moderna, mas em outros tempos com diversas explicações dos movimentos constantes do universo e que podemos observar e que repetimos em nós mesmos, sendo essa última parte a que te causa certo desconforto. 

Essa percepção do universo é algo que então se encontra no coração do homem desde muito tempo. Os gregos colocaram isso em seus termos naquelas buscas dos pré-socráticos pelo princípio primeiro de todas as coisas, e por isso afirmavam a criação advinda do movimento desses elementos primordiais. Anaxímenes apontava o ar, se inspirando no movimento de condensação da nossa respiração. Tales apontou a água, Heráclito o fogo... O que esses elementos têm em comum? Como cada um deles é capaz de transformação. O ar é simbolo e objeto da respiração, e vou voltar a esse tema da respiração logo mais adiante. A água o elemento da mudança, o empurrar e puxar do movimento das marés e como o líquido se adapta ao recipiente que o contém, também a capacidade da água de se condensar e se esvair em vapor, como análogo da respiração. E o fogo como transformador em si, sendo por meio do calor uma contínua transformação. 

Mas, antes dessa elaboração mais racional, mas ainda antes das observações propriamente filosóficas de Platão e Aristóteles, os gregos já explicavam o surgimento das coisas pelas relações entre os deuses, entendidos mais ou menos como o que hoje conhecemos como forças. Na Teogonia vemos os princípios de atração e repulsão: do caos primordial surge a Terra, sólida e fixa, o Eros atrativo e o Tártaro sendo algo como o fim antes do reinício. A combinação deles deu origem a Nix, a noite, e Hemera, o dia e assim sucessivamente as coisas foram se formando, em pares, em dualidades, em movimento. Atração e repulsão. Transformação. 

Mas não só os gregos como praticamente todos os povos, ao menos todos os que conheço, trabalham em si a noção de transformação. Na antiga religião da índia encontramos a trindade de Brahma, Vishnu e Shiva, respectivamente a criação, a preservação e a destruição. Shiva, por exemplo, é frequentemente representado dançando, sendo a destruição o primeiro passo para uma nova reconstrução. Ainda anterior a essa crença, o próprio Brahma (o Absoluto) já continha em si toda a concepção de universo como transformação na participação do seu ser, sendo que cada era, por assim dizer, era nada mais que o próprio movimento do seu respirar. O mantra mais importante do hinduísmo, do budismo e também de outras religiões, é justamente o foco na respiração necessária para a vocalização, sendo o enfoque de cada trecho do Om, ou como ouvimos o Aum, um enfoque na criação, na perseverança ou na destruição e, portanto, recriação. 

Também no próprio gnosticismo há o confronto de realidades na transformação do ser, como as sizígias da tese de Valentiniano, união entre unidades ativas e passivas que, descrendo do primordial perfeito e ideal deram origem ao mundo material e imperfeito, culminando na antítese Deus, perfeito e imutável, e o Demiurgo, criador das coisas como conhecemos, que se transformam e se degradam, nas pontas dessa crença.

Você já deve estar pensando que expliquei muito e ainda não disse ao que vim, e onde tudo isso se encaixa na sua visão sobre a relação sexual, algo que implica no seu cotidiano e também na nossa relação com os outros.

Tudo isso pode, mas espero que não, ter soado bem pagão e até mesmo anticristão, no caso do gnosticismo. Mas, se pensar um pouco mais e observar atentamente, essas teorias e crenças são apenas emanações distantes da revelação mesma que temos no cristianismo. No princípio, o Espírito de Deus pairava sobre as águas. A palavra Espírito, em hebraico Ruah, significa exatamente sopro, respiração, e o Espírito está na criação, na condução do mundo, desde os tempos antigos até o envio dos Apóstolos e guia da Igreja Peregrina até o expirar desse mundo antes da criação de um novo céu e nova terra anunciados no Apocalipse. Também Deus nos guia pela respiração, pela transformação que isso provoca em nós e ao nosso redor. Transformação que pode ser tomada em vários e amplos sentidos, sejam nas trocas gasosas dos seres vivos e nas reações químicas que, aliás você deve conhecer bem mais do que eu, até naquela que é reflexo da respiração primordial: o sopro divino que concedeu vida ao barro de que veio Adão é o mesmo que continua a soprar em cada novo ser gerado no ventre da humanidade. 

Essa relação de respiração que observamos ao nosso redor, sejam as trocas gasosas, o movimento das marés, o ciclo de dias e noites, as trocas das estações, ritmos constantes que vemos no mundo, mas que repetimos em nós mesmos, ao respirar e que culmina nessa respiração primordial: o sexo, onde a respiração é quem dita o ritmo, principio e fim das transformações profundas que as relações nos proporcionam. Seja a transformação física da geração e, portanto, criação de uma nova vida, ou da mudança interna (física e espiritualmente internas, entenda-se) que ela provoca. 

Ao unirem-se, os dois corpos alinham essa respiração, e fazem o movimento constante, aquele mesmo que você percebeu na música. Esse alinhamento tem bem mais em si do que apenas a conjunção carnal de duas pessoas, ela é a participação mesma desses dois seres no todo cósmico, toda a criação está presente ali, nas inspirações e expirações do casal, no hálito que evapora, no calor que transforma a pele e o corpo inteiro desde dentro e no plasma resultante do ato, que justamente reinicia todo o ciclo eterno do qual esses dois, em seus corpos, prenunciam. Isso porque acontecendo no corpo as consequências se dão na alma imortal, se dão de modo a perpetuar nesses seres aquilo que compõem cada um e que eles trocam entre si, saliva, hálito, respiração, enfim, o movimento inteiro do universo, de milhões de anos atrás e à frente, lembrando então do significado de eternidade não como prolongamento indefinido do tempo, mas da posse total de todo o tempo, onde os homens participam nesse respirar. 

Daí meu apelo para que você reveja a forma de ver a relação sexual, que na realidade vem daquele puritanismo protestante de princípio kantiano e que é tão comum entre pessoas de conversão recente ou que ainda dependem da aprovação do meio para viver: o kantismo ao esvaziar a religião e a moral deixou apenas os seus aspectos mais imediatos, isto é, o parecer moralmente correto, daí toda condenação da sexualidade, inclusive a bela e cheia de amor, amor esse que está repleto da potência criadora. Ao abominar a relação passamos então a renegar nosso lugar mesmo na criação e nosso papel de continuadores do Deus criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis, ou seja, dos corpos que vemos e das energias que ele contém que não vemos, mas que se encontram juntas e inseparáveis. 

A respiração de duas pessoas, seja num abraço, como você lembrou em nossa última conversa, ou numa relação sexual completa, nada mais é do que a mesma relação primordial criadora em planos diferentes.