sexta-feira, 3 de maio de 2024

A Respiração do Universo

É preciso que eu primeiro consiga silenciar o meu próprio coração, muito embora a agitação do mundo torne isso quase impossível, antes que consiga lhe explicar algo. 

Eis o que quis dizer ao me referir ao ritmo constante que você apontou na música como sendo "o ritmo do universo." Desde os tempos mais primórdios, e inda hoje, o homem se encanta e se espanta com o mundo que o rodeia, e da observação desse mundo ele tenta apreender algo, como que compreender o funcionamento do todo, dos mais diversos modos, hoje pelo funcionamento das partes, com a ciência moderna, mas em outros tempos com diversas explicações dos movimentos constantes do universo e que podemos observar e que repetimos em nós mesmos, sendo essa última parte a que te causa certo desconforto. 

Essa percepção do universo é algo que então se encontra no coração do homem desde muito tempo. Os gregos colocaram isso em seus termos naquelas buscas dos pré-socráticos pelo princípio primeiro de todas as coisas, e por isso afirmavam a criação advinda do movimento desses elementos primordiais. Anaxímenes apontava o ar, se inspirando no movimento de condensação da nossa respiração. Tales apontou a água, Heráclito o fogo... O que esses elementos têm em comum? Como cada um deles é capaz de transformação. O ar é simbolo e objeto da respiração, e vou voltar a esse tema da respiração logo mais adiante. A água o elemento da mudança, o empurrar e puxar do movimento das marés e como o líquido se adapta ao recipiente que o contém, também a capacidade da água de se condensar e se esvair em vapor, como análogo da respiração. E o fogo como transformador em si, sendo por meio do calor uma contínua transformação. 

Mas, antes dessa elaboração mais racional, mas ainda antes das observações propriamente filosóficas de Platão e Aristóteles, os gregos já explicavam o surgimento das coisas pelas relações entre os deuses, entendidos mais ou menos como o que hoje conhecemos como forças. Na Teogonia vemos os princípios de atração e repulsão: do caos primordial surge a Terra, sólida e fixa, o Eros atrativo e o Tártaro sendo algo como o fim antes do reinício. A combinação deles deu origem a Nix, a noite, e Hemera, o dia e assim sucessivamente as coisas foram se formando, em pares, em dualidades, em movimento. Atração e repulsão. Transformação. 

Mas não só os gregos como praticamente todos os povos, ao menos todos os que conheço, trabalham em si a noção de transformação. Na antiga religião da índia encontramos a trindade de Brahma, Vishnu e Shiva, respectivamente a criação, a preservação e a destruição. Shiva, por exemplo, é frequentemente representado dançando, sendo a destruição o primeiro passo para uma nova reconstrução. Ainda anterior a essa crença, o próprio Brahma (o Absoluto) já continha em si toda a concepção de universo como transformação na participação do seu ser, sendo que cada era, por assim dizer, era nada mais que o próprio movimento do seu respirar. O mantra mais importante do hinduísmo, do budismo e também de outras religiões, é justamente o foco na respiração necessária para a vocalização, sendo o enfoque de cada trecho do Om, ou como ouvimos o Aum, um enfoque na criação, na perseverança ou na destruição e, portanto, recriação. 

Também no próprio gnosticismo há o confronto de realidades na transformação do ser, como as sizígias da tese de Valentiniano, união entre unidades ativas e passivas que, descrendo do primordial perfeito e ideal deram origem ao mundo material e imperfeito, culminando na antítese Deus, perfeito e imutável, e o Demiurgo, criador das coisas como conhecemos, que se transformam e se degradam, nas pontas dessa crença.

Você já deve estar pensando que expliquei muito e ainda não disse ao que vim, e onde tudo isso se encaixa na sua visão sobre a relação sexual, algo que implica no seu cotidiano e também na nossa relação com os outros.

Tudo isso pode, mas espero que não, ter soado bem pagão e até mesmo anticristão, no caso do gnosticismo. Mas, se pensar um pouco mais e observar atentamente, essas teorias e crenças são apenas emanações distantes da revelação mesma que temos no cristianismo. No princípio, o Espírito de Deus pairava sobre as águas. A palavra Espírito, em hebraico Ruah, significa exatamente sopro, respiração, e o Espírito está na criação, na condução do mundo, desde os tempos antigos até o envio dos Apóstolos e guia da Igreja Peregrina até o expirar desse mundo antes da criação de um novo céu e nova terra anunciados no Apocalipse. Também Deus nos guia pela respiração, pela transformação que isso provoca em nós e ao nosso redor. Transformação que pode ser tomada em vários e amplos sentidos, sejam nas trocas gasosas dos seres vivos e nas reações químicas que, aliás você deve conhecer bem mais do que eu, até naquela que é reflexo da respiração primordial: o sopro divino que concedeu vida ao barro de que veio Adão é o mesmo que continua a soprar em cada novo ser gerado no ventre da humanidade. 

Essa relação de respiração que observamos ao nosso redor, sejam as trocas gasosas, o movimento das marés, o ciclo de dias e noites, as trocas das estações, ritmos constantes que vemos no mundo, mas que repetimos em nós mesmos, ao respirar e que culmina nessa respiração primordial: o sexo, onde a respiração é quem dita o ritmo, principio e fim das transformações profundas que as relações nos proporcionam. Seja a transformação física da geração e, portanto, criação de uma nova vida, ou da mudança interna (física e espiritualmente internas, entenda-se) que ela provoca. 

Ao unirem-se, os dois corpos alinham essa respiração, e fazem o movimento constante, aquele mesmo que você percebeu na música. Esse alinhamento tem bem mais em si do que apenas a conjunção carnal de duas pessoas, ela é a participação mesma desses dois seres no todo cósmico, toda a criação está presente ali, nas inspirações e expirações do casal, no hálito que evapora, no calor que transforma a pele e o corpo inteiro desde dentro e no plasma resultante do ato, que justamente reinicia todo o ciclo eterno do qual esses dois, em seus corpos, prenunciam. Isso porque acontecendo no corpo as consequências se dão na alma imortal, se dão de modo a perpetuar nesses seres aquilo que compõem cada um e que eles trocam entre si, saliva, hálito, respiração, enfim, o movimento inteiro do universo, de milhões de anos atrás e à frente, lembrando então do significado de eternidade não como prolongamento indefinido do tempo, mas da posse total de todo o tempo, onde os homens participam nesse respirar. 

Daí meu apelo para que você reveja a forma de ver a relação sexual, que na realidade vem daquele puritanismo protestante de princípio kantiano e que é tão comum entre pessoas de conversão recente ou que ainda dependem da aprovação do meio para viver: o kantismo ao esvaziar a religião e a moral deixou apenas os seus aspectos mais imediatos, isto é, o parecer moralmente correto, daí toda condenação da sexualidade, inclusive a bela e cheia de amor, amor esse que está repleto da potência criadora. Ao abominar a relação passamos então a renegar nosso lugar mesmo na criação e nosso papel de continuadores do Deus criador do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis, ou seja, dos corpos que vemos e das energias que ele contém que não vemos, mas que se encontram juntas e inseparáveis. 

A respiração de duas pessoas, seja num abraço, como você lembrou em nossa última conversa, ou numa relação sexual completa, nada mais é do que a mesma relação primordial criadora em planos diferentes. 

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