quinta-feira, 2 de maio de 2024

Virtude e futilidade

Aquela visão, no entanto, quase etérea, me despertou algo, muito brevemente, de modo quase imperceptível. Ver aquele casa, real ou não, acordando nus e sorrindo timidamente para a câmera, essa cena que, torno a dizer, de intimidade revelada, faz meu coração, o mesmo que há dias estava como de um morto, voltar a palpitar, ainda que lentamente, sem conseguir ainda bombear o sangue, mas como uma pequena fagulha na noite escura, brilhou por brevíssimo instante antes de se apagar. 

Mas eu sei bem que isso, na verdade, é um resquício daquele sonho louco, daquele devaneio que me fez perder a razão, que me fez desejar aquilo que nunca poderei ter…  Me vejo como um moribundo, ao término de sua vida fútil, recebendo então os últimos sacramentos, como aquela tola personagem de Flaubert que acabei de ler há poucos instantes.

Não posso, no entanto, esquecer-me de que se trata de um sonho e não da realidade. A realidade em si continua sendo dura e cruel, ainda que amenizada por certas palavras que, mais me servem de um consolo tosco do que de cura real. Tivesse eu um pouco mais que fosse de amor-próprio, jamais me submeteria a isso, mas, cá estamos nós.

Tenho de ter em mente algo bem claro: todos os meus sonhos, todos os momentos felizes que em minha imaginação fizeram morada profundamente fincada sob a rocha, todos eles serão vividos com alguma mulher, enquanto eu, caminho sozinho rumo ao fim do velho moribundo, quase aos moldes do Buck, mas sem o sucesso que ele atingiu, sou ainda pior e mais desprezível e até ele teria nojo de um maricas como eu. 

Malditos sonhos! 

Ah se eu não sonhasse jamais…  

Vejo como eles me causam dor, como machucam aqueles que amo, como viver nessa fronteiras de sentimentos, de conflitos, de querer e não querer, de reagir, de sofrer, de me sentir atacado por todos os lados, toda essa sensibilização, é tudo devido aos sonhos, e é por isso que não queria sonhar, mas também não queria ficar acordado para ver a verdade diante de meus olhos: queria poder adormecer e não mais tornar a despertar. 

Assim não precisaria ver que ele partilha, em tão pouco tempo, mais coisas com elas do que comigo que estive ao seu lado em tantas batalhas. Que a proximidade diz mais respeito ao desejo do que ao tempo, que o sentimento verdadeiro não pode jamais ultrapassar o livre arbítrio do outro. Mas por que se o outro é livre para não me amar desse jeito, por que eu me vejo prisioneiro desse amor? Mas todas às vezes foi assim não é? Sempre tive valor apenas enquanto alguém não chegou para ocupar o meu lugar. Então por que não posso fechar os olhos, dormir, e deixar que ocupem logo de vez, sem me opor, e simplesmente deixar que o tempo e o vento levem meu corpo, adormecido para sempre, por entre o farfalhar das folhas no céu de outono?

E é por isso que, enquanto não fecho os meus olhos definitivamente, eu ao menos os fecho para dormir mais um dia, para viver menos um dia, para esquecer por mais um dia.

Refaço na minha alma algo daquele antigo embate entre os filósofos que buscavam o princípio último das coisas, buscando eu o princípio desse meu movimento interno tão recorrente. O ceticismo que pairava sobre a mentalidade grega graças as doutrinas de Heráclito e Parmênides que se excluíam umas as outras, também se faz dentro de mim. Se o ser é estático e a percepção do movimento é uma ilusão ou se, por outro lado, tudo está num estado de constante mudança e não existe nenhum princípio de estabilidade, então nossa percepção não é confiável. 

Por um lado há o sentimento verdadeiro, imutável em si, e por outro o livre arbítrio do próximo em aceitar ou rejeitar esse mesmo sentimento que aparenta ir contra os movimentos internos dele mesmo. Assim, cada movimento interno parece ir contra o do outro, excluindo-se mutuamente. Mas, se na época o gênio platônico conseguiu sintetizar ambos nas suas reflexões acerca do pensamento, eu não tenho estatura para tal, a não ser tomar uma atitude quase estoica, de apenas aceitar que as coisas são assim, e que são uma desgraça. 

Em alguns momentos eu não sei mais distinguir se meu amor é exemplo de virtude elevada ou de pecado devastador, ou se apenas é demonstração de infantilidade de alma, como a pobre moribunda Madame Bovary no leito de morte.

"O padre levantou-se para pegar o crucifixo; então ela alongou o pescoço como que tem sede, e, colando os lábios no Homem-Deus, depôs ali, com toda sua força expirante, o maior beijo de amor que já dera. Em seguida ele recitou o Misereatur* e a Indulgentiam*, molhou o polegar direito no óleo e começou as unções: primeiro nos olhos, que tanto cobiçaram todas as suntuosidades terrestres; depois nas narinas, apreciadoras de brisas tépidas e odores amorosos; depois na boca, que se abrira para a mentira, que gemera de orgulho e gritara na luxúria; depois nas mãos que se deleitavam com os contatos suaves, e enfim na planta dos pés, tão rápidos outrora, quando corria para a satisfação de seus desejos, e que agora não andariam mais." (Gustav Flaubert)

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*Misereatur tui omnipotens Deus, et dimissis peccatis tuis, perducat te ad vitam æternam. Amém.
Que Deus onipotente se amerceie de ti, que te perdoe os pecados e te conduza à vida eterna.

*Indulgentiam. absolutionem, et remissionem peccatorum nostrorum, tribuat nobis omnipotens et misericors Dominus: Amém.
Indulgência, absolvição, e remissão dos nossos pecados, conceda-nos o Senhor onipotente e misericordioso. Amém. 

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