sexta-feira, 31 de maio de 2024

Consciência e Moralismo

Giuseppe Antonio Pianca

Já é certo que o puritanismo e certo moralismo de origem kantiana são danosos ao homem como um todo, não só ao homem de fé, mas dessa vez venho refletir sobre um ponto específico que, não raramente, é causa de confusão pela aparência de contradição. Aqui, de modo mais pessoal, me refiro a ti mais uma vez me desculpando pela soberba de julgar poder lhe ser útil em algo, mas acrescento ainda que, se me permite ajudar, ajudo também a mim. 

Certa vez já comentei com você aquela citação que "o poste que indica o caminho não vai ele mesmo pelo caminho", a qual eu não consegui encontrar o autor, senão que tenha sido citada pelo Prof. Olavo em uma aula justamente a respeito desse assunto. 

A moralidade é algo presente nas nossas vidas hoje de modo arrasador. Os detratores da Igreja não fazem ideia que, sendo justamente a moral um substituto da religião, por essa razão mesma ela se torna tão pesada quanto deformada. Isso porque, não raramente, somos tentados a suprir todo lócus emocional por meio da afirmação externa, ou seja, se o outro disser que somos morais nós assim nos sentimos, o que resulta por fazer com que todos tenham que agir polidamente de modo a encarnar sempre uma nova mulher de César: o retrato perfeito da moral e dos bons costumes.

Com isso, quando falamos, por alguma razão qualquer, sobre valores como a castidade ou até mesmo a simples honestidade, já somos logo atacados, especialmente no âmbito católico, acerca das afirmações hipócritas. Segundo esse raciocínio, se alguém não é capaz de viver a castidade, jamais deveria falar dela. Não é preciso ser um gênio para entender que, se fosse assim, todas as virtudes desapareceriam completamente do plano social, como muitas vezes parecem ter desaparecido e sido substituídas por um simulacro: é preferível a aparência de virtude, já que a virtude não é possível.

"É necessário que muitos, que todos preguem uma moral superior a suas ações. O ministério... faz com que homens débeis e que de fato cedem algumas vezes às paixões preguem uma moral austera e perfeita. Ninguém pode acusá-los de hipocrisia porque falam por missão e por convicção, e confessam implicitamente e às vezes explicitamente estar longe da perfeição que ensinam. Ocorre infelizmente que às vezes a pregação desce ao nível dos costumes, mas isso é um inconveniente: sem o ministério seria uma regra." (A. Manzoni)*

Não costumo me importar com as acusações de hipocrisia, com efeito, sei que choco muitas pessoas com meu jeito e com as coisas que digo e faço, mas isso porque já vi o suficiente desse moralismo tosco para saber que, quanto maior a afetação de moralidade, pior a consciência por trás dela. Sendo então proporcionalmente destrutivo os ataques disparados aos outros. 

O meu ponto é justamente que, vale mais lutar e cair dezenas de vezes do que simplesmente se entregar, como se nada mais importasse, como se de repente pudéssemos trazer à tona todos os vícios e exaltá-los como se fossem virtudes. A luta é tão importante, pois sem ela, não daríamos valo a vitória e, se estamos realmente em busca de prêmio tão grande, tão grande também deve ser nossa luta e nosso gloriar na cruz dessa batalha, não é mesmo?

Essa luta é então motivada por uma consciência desperta e que impulsiona as demais potências do ser em direção ao objetivo a ser atingido, a saber e a nunca se perder de vista: a salvação, razão pela qual fazemos tudo o mais na nossa vida, inclusive aquelas coisas que parecem pouco a nada ter a ver com isso. 

A principal busca então deve ser a da transparência para consigo mesmo, algo que se mostra e se nos revela a nós como uma assíntota, dela vamos nos aproximando gradualmente, e em outros momentos nos afastamos, e a insistência nessa busca é que garante a não conformidade com o mundo ou com a mediocridade confortável que, como vejo, tanto te causa dor. Isso significa então constantemente olhar para aqueles pontos de nós mesmos que não queremos olhar e, fazendo uma sincera busca da Verdade, aceitar a verdade que é ver os pecados que há em nós. 

No entanto, é justamente nessa confrontação que podemos encontrar aquilo que podemos mudar. Se tomar, por exemplo, o ambiente terrivelmente opressivo do cristianismo americano, onde é cobrado de todos uma conduta perfeita, e onde o menor deslize pode acabar com a vida de um sujeito. Conforme essas seitas foram se afastando da Igreja Católica e abolindo, simplificando ou ressignificando os sacramentos, o peso formador da religião foi todo transmutado para a área da moral, exigindo então de todos uma perfeição moral inalcançável e, ao mesmo tempo, obrigatória a todos.

Quando vemos então os pecadores que até na Bíblia foram considerados justos, como Abraão, o Rei Davi e seu filho Salomão que, apesar de suas faltas continuaram sendo exemplos de grandiosidade, não foi porque Deus ignorou seus pecados e suas imperfeições, mas que, pelo fato de Deus ser Justo, considerava esses pecados dentro do quadro geral de suas vidas, isto é, Deus considerava a proporção de suas faltas com relação as demais virtudes de suas vidas. Todos foram punidos por seus pecados, mas isso não significa que os pecados tenham tomado proporção maior que a das virtudes daquelas vidas. 

Donde quero chegar com isso: ao buscar a virtude, ainda que se comece pelas pequenas coisas (afinal por onde mais poderíamos começar?) conseguimos aos poucos chegar até as grandes. Não pense que grandes estudiosos sempre o foram grandes estudiosos. Se gigantes como Bento XVI ou São João Paulo II chegaram a escrever sozinhos o que em muitas épocas foi maior do que bibliotecas inteiras, foi porque um dia tiverem de começar no primeiro livro, e tiveram de avançar em algumas áreas que não conheciam, e insistir, sem parar, sem precipitar e sem retroceder. 

Então, dentro da personalidade total cada coisa tem um peso. Isto é, quando São Pedro diz que "a caridade cobre uma multidão de pecados" (1Pd 4, 8), ele quis dizer o seguinte: Deus é a única imagem de amor verdadeiro, dessa imagem somos cópias reduzidas, mas quanto mais nos aproximamos dessa imagem de amor, mais nos aproximamos da imagem total, diante da qual os pecados tem um peso muito menor pois, sendo eles a ausência da caridade, não há um polo oposto de tipo maniqueísta do qual eles se aproximam. 

A nossa imagem total, da qual tomamos aos poucos consciência, é então, composta pela totalidade das ações, as quais incluem também os pecados. Isto é, o quadro geral deve ser belo apesar das pequenas falhas. Tomemos o conselho de São Pe. Pio diante do pecado: se fez o pecado, agora faça o bem. Não fique em agonia ou angústia. Quando fizer algo errado, reze, não se preocupe e se concentre em fazer algo bom. Tenhamos em mente que até mesmo o pecado de Adão tornou-se, na transmutação, em culpa feliz. Isto é, tomada individualmente o pecado de Adão foi devastador, mas tomada no conjunto da história da salvação foi algo que tornou necessária a ação presencial do próprio Cristo.

Então essa compulsão de ficar pensando em pecados o tempo todo, desesperando-se de cada pequena falha, de cada pequeno erro, como se Deus estivesse mais preocupado com o fato de um jovem se trancar no banheiro para se masturbar ao invés de tentar ser uma boa pessoa que, apesar de tudo, se masturba, isso é uma negação, uma inversão da justiça divina. Será que Deus então não levaria em conta nossa vontade de sermos bons? E não nos ajuda quando pedimos que nos dê força para fazer o que é bom e o que é certo?

Não se trata de tentar Deus, mas de confiar na misericórdia e, uma vez tocado por ela, saber que ela é maior do que a nossa tendência de pecar. Contar com a misericórdia não é tentar a Deus, é se entregar a ele, é ter adoração a Deus que nos perdoa e que nos chama ao perdão. Mas se começamos a nos preocupar com a moral quantitativa, aí somos destruídos pela nossa própria consciência, quando ela é que deve nos aproximar dele. Tomando o pecado do homem que busca a Deus e do homem que nada se ocupa de Deus, ele julga com misericórdia aqueles que o buscam e que admitem suas limitações. Acaso ele nos julgaria com maior severidade do que aqueles que por escolha se afastaram dele? 

Não façamos guerra contra nós. Esqueça dessa história de parecer perfeito, peça a Deus que ele nos conforme a sua imagem e, assim, nos tornaremos pouco a pouco mais perfeitos, sem aparência, mas numa conformidade real a Deus. Olhemos para Deus, para sua perfeição, não para nossos pecados. 

"Senhor Jesus Cristo, dissestes aos vossos apóstolos: eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima vossa Igreja; dai-lhe, segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o Espírito Santo."

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*A. Manzoni, Osservarzioni sulla Morale Cattolica, ed. cit. III, p. 135.

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