sexta-feira, 24 de maio de 2024

A descrição triste de um semideus

"(...) Cada um que se vai, foge um pouco da gente..." (João Gumarães Rosa)

Preciso voltar a escrever coisas simples, como aquilo que vejo e que me chama atenção, de algum modo. Já há alguns dias um rapaz tem me atraído no ônibus, o encontro quase todos os dias pela manhã. A aparência dele não daquela delicadeza que geralmente me atrai, mas pelo contrário, ele é bem másculo aos meus padrões. 

Tem a pele morena, quase o mesmo tom que o meu, e uma tez dura, isto é, os ângulos do rosto são bem marcados. Ele me lembra alguém que acaba de sair do exército, seja pela expressão séria, quase severa, de quem desaprova a minha delicadeza. Não que ele tenha realmente olhado para mim, acho que nas últimas três semanas ele me viu apenas de relance, hoje foi uma dessas vezes inclusive, isso porque ele dorme quase a viagem inteira, e acorda só para a baldeação, o que é um pouco engraçado. De todo modo, hoje me olhou muito brevemente, e eu desviei rápido, voltando o rosto para o livro à minha frente. Se é que ele já se deu conta da minha presença, talvez seja por isso: todas às vezes que estive perto dele, estava com um livro nas mãos. 

Teve uma vez que sentei ao seu lado, foi quando notei o corpo atlético pela primeira vez, daí a impressão de que talvez ele tenha estado no exército, isso somado ao cabelo extremamente curto. Ele usava uma camiseta regata nesse dia e os braços fortes, dobrados um sobre o outro, saltaram aos meus olhos. Tentando não encarar, eu me sentei ao seu lado. Por alguns instantes pensei que eles estava tentando me tocar, já que os dedos tocavam meu braço, flexionado por conta do livro, mas foi um engano. Ele apenas estava absorto em sono. De todo modo, seguimos viagem, ocasionalmente com as nossas peles se tocando e ele sem demonstrar desconforto com isso. A eletricidade que senti nesse toque foi apenas minha imaginação, e eu percebi que, dos rapazes que descrevi aqui, esse talvez tenha sido o texto menos doce e idealizado. 

Talvez o poeta dentro de mim esteja adormecido, ou morto. Será que voltarei a me encantar um dia?

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