quarta-feira, 1 de maio de 2024

Desiludido

The Subway, José Clemente Orozco

Estranho experimentar isso, a mente silenciada pela estafa. Mais uma vez dormi por dois dias inteiros sem que ninguém o notasse, o máximo que ouvi foi: ele deve estar muito cansado. Mas essa não é a verdade, ainda que muitos esperem que, após antas horas de sono, eu esteja pronto para qualquer coisa. Não é bem assim. Porque o cansaço que sinto não é daqueles que precisa de uma boa noite de sono, não, é bem mais do que isso. 

É com grande tristeza que lembro que não estou empolgado com coisas que deveriam me animar, e que tentei maratonar uma pequena série no sábado, mas a melancolia era tamanha que o energético bateu no meu corpo e foi de pronto absorvido, eu dormi assim mesmo, triste, sem conseguir me concentrar em nada. 

E esses dias passaram como um grande borrão, adormecido, apenas isso, na doçura da inexistência. Nem por isso que eu estaria hoje descansado, esse sono não é o sono restaurador que todos pensam, é apenas o sono doce do não pensar, do não lembrar dos problemas, do esquecer como é viver, como é a dor de estar vivo e consciente disso. É o sono que apenas expressa o desejo profundo do Não-Ser. 

Mais ou menos essa mesma condição é que a vem se prolongando também durante o dia. Sentei ao lado de um rapaz bonito, com um grave quadro de acne, no ônibus, mas preferi me ocupar com as palavras do livro que trazia no colo, sem me importar com a presença dele, que esqueci cinco segundos depois e só me lembro agora para perceber que, de fato, não fez diferença nenhuma, e que lembro dele, e do outro no ônibus seguinte, com a mesma indiferença com que desço as escadas para pegar mais um copo com água. 

Confortavelmente Desiludido

Tenho vivido a vida
Sem saber se ainda
Carrego uma alma.
Há tempos, 
Nenhuma paixão
Pare enternecer 
Meu coração petrificado.
Eu me tornei
Confortavelmente desiludido.

(Sávio Oliveira Lopes)

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