sexta-feira, 28 de junho de 2024

Meu silêncio

Tenho ficado em silêncio, distante. Se me perguntam digo que estou ocupado ou com dor e por isso quieto. Na verdade, tenho tentado controlar algumas coisas aqui dentro. A ansiedade cresce, juntamente com o sentimento depressivo que me aperta o peito até faltar o fôlego. Só consigo, por enquanto, enxergar tudo que deu errado e como ainda pode dar. Só consigo não querer, buscar fugir, não encarar, afinal toda verdade é dolorosa demais e, no entanto, não há como parar de contemplá-la, que se impõe firme e forte diante de mim. Estou sempre diante da grande muralha de verdades.

Busquei refúgio na oração, de modo sincero, confessando meus medos, minhas fraquezas sem o invólucro de mentiras que normalmente usamos para os outros. Minha prece mais sincera, diante do Santíssimo Sacramento, foi pedir que ele me levasse, apenas isso. E acho que isso já explica muito. Eu já desisti, de um jeito que não há mais salvação, ao menos não para mim.

Dois pássaros rodopiam ao redor das folhas da camélia que vejo pela janela. Está um pouco frio mas o sol brilha forte. Já tive de ver algumas pessoas bem animadas, animadas demais pela manhã. Agradecendo e sei la mais o quê se passa na cabeça delas. Não sei se consegui esconder o suspiro profundo que dei ao ouvir deles esses absurdos. Como podem agradecer pela existência? Estão cegos ou burros, é a única possibilidade. 

O mundo inteiro gira ao meu redor. Tudo gira. Parece que eu vou morrer. Não são nem dez da manhã e já quero voltar pra cama e só sair de lá na semana que vem.

Como explicar a eles a falta de encanto pela existência? Como explicar que uma tristeza profunda toma conta do meu ser? Como explicar que eu gostaria de poder tapar esse sol para sempre, e mergulhar o mundo todo em trevas? Banhar o chão com sangue de modo que as ruas se pareçam com oceanos carmesim, reduzir toda essa grandiosidade da qual o homem se orgulha às ruínas? Eu quero a destruição, eu quero voltar ao nada. 

Quanto mais, até onde pode descer a pessoa humana? Até onde pode ir a mesquinhez do homem?

"Porque eu quero morrer.  Eu quero desesperança. Eu quero voltar ao nada. Mas eu não posso.  Ele não vai me deixar voltar a inexistência. Ainda não. Eu ainda existo porque ele precisa de mim. Mas quando tudo acabar, quando eu não tiver mais utilidade, ele vai me abandonar. Eu rezei pelo dia em que ele me abandonaria." (Neon Genesis Evangelion)

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Pessimismo ou Idealismo?

Será que estamos sendo pessimistas demais em pensar que não conseguiremos conquistas as mesmas coisas que as gerações anteriores, ou estamos em pleno acordo com a realidade? Coisas como comprar um carro ou uma casa, olho para minhas finanças do mês e vejo o quanto uma coisa está da outra. Será que pensar então na decoração dos ambientes, capas de livros e pôsteres de filmes emoldurados, um oratório com um quadro de Nossa Senhora, uma máquina de café e canecas combinando, não seria isso uma idealização? Sou um tipo de pessimista idealista? 

Admito que ambas as coisas se encontram em mim, Deus e o Diabo é que me guiam, já dizia José Régio. 

Se por um lado me deleito em imagens que nunca vão acontecer, seja ao passar na frente de uma loja, conversando com um afeto ou quando um desconhecido beija minha testa por acidente, por outro eu simplesmente olho ao meu redor, todas as possibilidades, todas as lutas, tudo isso encaro com profundo desgosto. 

Do ponto de vista da eternidade nada disso tem valor, então não deveria me ocupar com esses pensamentos, mas do ponto de vista de um homem fraco e mesquinho como sou, eu penso nessas coisas e elas me afligem a alma.

Tomando de ansiedade, medo, raiva, sangue e cânticos nos lábios eu sinto o quanto preciso de uma profunda purificação dos sentidos e do espírito, de uma longa noite escura que me faça amar de verdade o que precisa ser amado, aprender a caminhar entre as coisas que passam e abraçar as que não passam. 

E então vejo a dimensão da minha consciência, do mapa dos meus problemas, se abrirem, até que eu possa vislumbrar algo como uma solução: a maturidade de me comprometer única e tão somente com a vida intelectual, isto é, com o que é eterno, e não sofrer como quem não possuísse nada de elevado na alma. O homem caminha no lodaçal, mas fita o alto. 

Percebo que as palavras estão desencontradas, são retrato do desalinho em que me encontro. Já não posso buscar a retidão, infantilidade seria querer controlar tudo. Em verdade, o pouco que controlamos é justamente onde está nossa atenção. Ao quê meu coração tem se dedicado? O que tem habitado meus pensamentos?

Percebo que meus pensamentos são apenas amálgamas de confusões que eu mesmo criei e das quais eu não consigo mais escapar, que me prendem como a um peixinho numa grande rede, que não sebe se nada ou e debate, que já não respira, que já não consegue saber se deve continuar ou simplesmente desistir. 

De minha parte, já não quero mais tentar. Darei uma chance a essa viagem, darei uma chance a noite de hoje, darei uma chance, mas não para mim, eu não mereço mais chances, e já não há mais esperança. Então, se de todo serei nada e nada mais que isso, que ao menos possa voltar para casa e dormir um sono solto, profundo, e depois morrer enquanto sambam em cima do meu caixão. Oh, que gozação, não se lembrarão de mim o bastante para profanarem minha sepultura. 

"(...) Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência divina... Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza de bode." (William Shakespeare)

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Tendo razão

Weeping Woman, Edvard Munch

Eu disse. 

Infelizmente tenho o dom de enxergar ao longe quando algo dará errado. Talvez porque sempre espere o pior? Pode ser, mas de todo modo continuo tendo razão em minhas previsões. 

Não consigo nem contar quantas vezes, nos últimos dias, pensei em dar cabo da minha própria vida. Das mais diversas formas. Pensava, enquanto vinha para casa sentindo o vento frio no rosto, que ninguém poderia dizer, hipocritamente, que não houve sinais e nem pedidos de ajudar: há muito que tudo o que digo é mais do que um mero rumor, mais do que um mero sinal. É um grito, no sentindo poético do termo, pois, embora não grite de verdade, a frequência dos gemidos são tão alarmantes como se saísse em desespero. Mas ninguém parece se importar, acho que todos pensam que eu apenas estou a falar demais e que nunca terei coragem de fazer nada. Como a música que escuto todas as manhãs diz: maybe they just don't give a damn...

Bom, embora ninguém acredite, quando eu mesmo procuro, não encontro outra coisa em meu peito que não seja apenas escuridão. Tomo como minhas as palavras do salmo que diz "saturada de males se encontra a minha alma, e meus pés já se encontram à porta da morte" (Sl 87). Tudo o que vejo, sinto, penso, é em como falhei em tudo e como tudo o mais se mostra tão difícil, tão duro, tão horrendo, que até os mínimos detalhes se mostram mais complicados do que realmente o são, porque a minha mente se corrompeu, porque meu coração secou, porque eu já não sou mais quem era e nem quem poderia ser, eu não sou, eu sou o que restou, e não restou muito. 

Ouço desculpas, por tudo, mas sei que, na verdade, a culpa foi minha, por anos atrás, ter escolhido ter esperança, e então, ao me deparar com a realidade, fui fraco para suportar, e então a verdade me derrotou, e me tornou um homem amargurado, um homem triste, um homem incapaz de organizar uma viagem sequer, um homem que não tem controle ou equilíbrio, uma criança chorona, um não sei quê que fica balbuciando. E então eu vejo o quanto me esforço sem chegar a lugar algum, no trabalho, nas amizades ou no amor, vejo as dívidas que acumulei, as poucas forças que me restara, e então vejo que não posso fazer mais além do que lamentar a tristeza profunda.

Também ouço mensagens de encorajamento, que dizem estar comigo. Não estão, e nem me refiro a presença real ou temporal, me refiro ao fato concreto e absoluto de que, em verdade, eu estou sozinho.

Lamentar que eu queira pensar numa decoração boba para minha casa quando preciso contar os centavos para viajar e ver uma amiga por três dias, quando há meses quero comprar uma máquina de café e não tenho conseguido por nem ter onde colocá-la. São lamentos por coisas bobas, pequenas, mas que vão se aglutinando, mas que, em verdade, são uma reverberação do lamento primeiro, o lamento de desamor. 

Vibrei, e chorei, de alegria ao ver que Both e Newyear, dois artistas que acompanho há alguns anos, vão se casar oficialmente agora que o casamento igualitário foi aprovado na Tailândia. Bom, talvez ainda exista amor no mundo, só não pra mim. 

 "Sem conta são meus gemidos, meu coração a parar..." (Lamentos de Jeremias)

terça-feira, 25 de junho de 2024

O Dia Seguinte

"Stapleton Park near Pontefract Sun", John Atkinson Grimshaw

"A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino?" (Fernando Pessoa)

Passou como um raio, apenas dois dias para descansar, ou pelo menos é o que dizem os hipócritas. Amanhã recomeça o inferno de novo, as cobranças desmedidas, a lentidão dos processos, como se a vida inteira fosse composta por pessoas que podem trabalhar muito, ter resultado de menos e receber quase nada. Mas, pelo menos nesses dois dias em que posso descansar, posso dormir, e esquecer que ele chamou alguém para sair, que enquanto eu penso nele ele pensa em outra pessoa. E que existência miserável essa. Eu devo ter perdido alguma coisa, será que só eu não sei porque as pessoas insistem nessa vida tão mesquinha, tão ridícula? Ainda agora, me pergunto como todos não optam pelo suicídio ao se darem conta do quão miseráveis são. Que inferno. Acho que eles nunca se dão conta. O que eu não sei também é porque eu mesmo ainda não fui embora. Ainda fico aqui me submetendo a toda essa humilhação. 

A chuva cai fina e constante lá fora, por volta das três da tarde havia escuridão por todo canto. Minha mãe reclama em dias assim, diz que são tristes, eu concordo, mas me identifico com a melancolia desses dias. Enquanto todos se preocupam com outras coisas, eu penso apenas na imensa miséria humana. Sim, eu sei, é mais pessimismo do que qualquer um pode suportar, por isso estou sozinho, por isso dormi o dia inteiro e por isso amaldiçoo o amanhã porque sei que terei que levantar e continuar a viver essa vida patética. Se eu ao menos não fosse tão covarde, poria um fim nisso e não veria mais um maldito nascer do sol.

Eu estava sozinho, eu estou sozinho, não importa o que digam, eu serei logo substituído por alguma garota, ou garoto, porque qualquer pessoa é mais importante do que eu.

Rezei com o coração completamente aberto naquela noite, meus dedos deslizavam pelas contas do terço como as lágrimas pelo meu rosto caíam no travesseiro. Minha prece eu a repeti até cair de sono, mesmo tendo dormido pelo dia inteiro: que não acordasse no dia seguinte, 

que não acordasse no dia seguinte, 

que não acordasse no dia seguinte.

Mas cá estou eu, 

acordado, desperto, 

e já sendo cobrado, 

no fatídico e maldito dia seguinte. 

"Me matando só o suficiente
para continuar vivo

Me pergunto se não estou vivendo
só o suficiente para morrer"
(Lucas Lopes)

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Imagens e um pouco de Tomismo

Rembrandt

Ganhei um beijo no alto da cabeça, rapaz alto, me abraçou enquanto estava desprevenido. Mas logo em cima vi que cumprimentou outros assim também, a educação dele me desconcertou por um breve instante. 

Não, não me apaixonei. 

Mas, como alguém sensível, admito que ele realmente me desconcertou um pouco, mas logo passou.

O outro garoto, o que encarei por meses, finalmente vi um olhar diferente nele. Apaixonado? Não sei, mas certamente doce, quase feliz. Mas não era para mim que ele olhava e sim para a moça ao seu lado e segurava a sua mão fazendo leves carícias com os dedos. Me irritei com eles. Talvez eu sentisse algo por aquele garoto, mas não foi como esperava que seria. Me irritei, é verdade, mas virei o olhar e a vida seguiu. 

Acho que depois de tantas decepções as pessoas passaram a significar menos, ou quase nada, para mim. 

Aqueles dois, que se conheceram há poucos dias, e passaram metade deles no quarto fazendo sexo, agora observavam o céu, o céu que um deles nunca tinha parada para observar e que o outro amava por ser uma das vistas mais lindas daquela ilha. Ele preparara aquele momento especial, forrou a areia com uma manta de cor azul, parecido com o azul do mar naquela noite, ao refletir o brilho da lua, e espalhou algumas velas ao redor deles. E então, apoiando no braço do seu novo amante, ele se desculpou pelas palavras grosseiras, e contou um pouco de sua história, de como não tinha lembranças de viagens em família para recordar, e que ali, ao lado daquele homem tão estranho, tão impetuoso, que faz o que lhe dá na telha a todo momento, ele começa a colecionar boas memórias. 

Mergulharam juntos, jantaram em lugares românticos, viram paisagens que ele não conseguiria descrever nem mesmo se parasse de escrever romances e passasse a descrição paisagística. Em poucos dias fizeram sexo mais vezes do que poderiam contar, numa fome que parece nunca cessar. É que, na verdade, ambos encontram nos braços um do outro, uma parte da cura que tanto buscaram a vida inteira. Confiança. Um encontra a confiança que o pai nunca lhe deu e o outro, a confiança que o pai quebrou. 

O beijo inesperado, o casal observando o céu estrelado. Eu acordo e percebo que, na realidade, a concepção de que o amor é apenas uma invenção sem força suficiente para existir e transformar-se de modo a permanecer para sempre, é a verdade dura da vida. O amor não existe e, no entanto, eu sigo amando. 

Tenho me aprofundando um pouco mais na teologia tomista e, nos últimos momentos, na moral tomista, e me surpreendi em ver como ela é uma moral positiva, mais no sentido de engenharia da santidade, se afastando um pouco daquela moral apresentada por S. Afonso que, embora de inspiração tomista, por necessidade precisou retomar um sistema moral muito mais prescritivo do que o apresentado por S. Tomás. 

Aquelas páginas então me soam como um grande chamado, contrariando a onda antitomista que defende a frialdade inorgânica do aquinate. Não, S. Tomás está sistematizando um chamado profundo à santidade: a moral é o meio pelo qual o homem ordena a sua vontade para amar mais e melhor. Não apenas uma lista infindável de pecados que cai, na melhor das hipóteses, num escrúpulo tão destrutivo que coloca o próprio homem em cheque pela impossibilidade do sumo bem. S. Tomás, pelo contrário, procura colocar as bases firmes e sólidas de como podemos, partindo da fuga das ocasiões de pecar, chegar ao extremo da santidade por meio do exercício das virtudes: não se trata tampouco de um trabalho que mostra que o esforço do homem é que o faz santo, não, mas mostra como podemos tomar com eficiência as virtudes e os dons, a graça santificante dos sacramentos, e com isso, com esse presente divino, ir construindo o nosso castelo interior. Qual foi a minha surpresa ao perceber com mais profundidade a íntima relação entre a sistemática moral tomista e a profunda mística carmelita.

S. Tomas nos ensina a amar mais, da melhor forma possível: purificando aquilo que comanda as demais ações do homem. Ele ensina, embasando fortemente e criando depois uma catedral inteira com essas bases, as muitas formas de se amar, repito, não apenas dizendo o que não se deve fazer, mas abrindo um universo inteiro de possibilidades. S. Teresinha, por exemplo, nos apresenta a pequena via de santidade, em que fazendo as pequenas coisas tendo em vista a Deus podemos chegar às grandes realizações, que não são apenas as grandes coisas feitas, mas as grandes transformações na alma que se configura a Deus. Essa concepção carmelita, que já estava em perfeita harmonia com os mestres carmelitas S. Tereza e S. João da Cruz, está ainda em igual harmonia com a síntese moral tomista.

Parece então que dei um salto quanto ao início do texto e seu fim, mas ambos se tratam da mesma coisa: S. Tomás fala da necessidade de amar, os mestres místicos ensinam como amar, mas, ao observar o mundo, só consigo ver o quanto renegam esse amor. Me encontro então como o São Francisco que, entre prantos, dizia "o amor não é amado." Assim como a constatação de que o mundo ignora o amor de Cristo angustiava Francisco, a constatação de que também meu amor é ignorado pelo mundo, me traz a sensação de ser cortado por aço frio. O meu amor não é amado. Eu quero amar você mais, tudo que tenho feito é para conseguir te amar de um jeito melhor e mais sublime. Devia me dedicar a amar a Deus, mas não consigo tamanha abstração sendo objeto de nojo e desprezo de suas criaturas que preferem morrer a me amar. Sou um daqueles que angustiava Francisco. 

Tenho pretensões de amar, mas tudo que conheço do amor é a dor.

As desilusões não cessam jamais, seguem-se uma a uma. 

Reconheço com clareza o meu erro: enquanto os santos, místicos ou teólogos, falam do fim último, do bem supremo, ao se referirem ao amor, eu estou preso ao amor do outro, do outro que se me nega, do outro que... Do outro que eu, por mais próximo que seja, nunca serei amado. 

As desilusões não cessam jamais.

No fim das contas, não adiante o quanto eu ame, meu amor é baixo, falho, humano demasiado humano e sequer pode alcançar o coração de outro homem. O meu amor jamais será amado. 

domingo, 23 de junho de 2024

Doçura

Experimentando a mais absoluta solidão. Quantas vezes eu já disse isso? Completamente exausto ao sair de uma reunião onde ninguém entendeu o que eu disse. E minha família são estranhos que vivem na mesma casa que eu, também não entendem o que digo. Meus amigos e conhecidos do trabalho, todos eles são pessoas com que troco palavras, mas ninguém entende o que digo. E eu não os entendo. Somos então universos inteiros, distantes, singularidades em ruínas.  

"Não, não é cansaço... É uma quantidade de desilusão que se me entranha na espécie de pensar." (Fernando Pessoa)

Querem o amor que idealizam, também já o quis. 

Querem as festas, os arroubos espirituais. 

Querem o sucesso, querem os amigos. 

Querem ter família, uma casinha branca de varanda, um quintal e uma janela pra ver o sol nascer. 

Eu não consigo querer mais nada disso. Eu só queria não ter que ver as pessoas correndo loucamente atrás disso como se algo disso tivesse algum valor. 

Os amores traem, acabam, ou preferem morrer a amar de verdade. 

As festas terminam e resta apenas a ressaca, 

os arroubos espirituais cessam e não conseguem suportar a noite escura. 

O sucesso passa, 

os amigos morrem e, passados alguns poucos meses, ninguém mais se lembra de verdade. 

A família briga, a casa se desfaz e a varanda, onde um dia conversaram ao cair da tarde, vê-se a mercê dos cupins e de um tempo implacável que logo a transforma em ruínas. 

Tudo isso passa. O destino do homem que caminha nessa terra miserável é a ruína. Por isso só tem valor aquilo que não passa. Por isso só aquilo que permanece, eternamente, é que deveria constituir ao homem objeto de desejo. 

Dessas coisas o amor poderia ser eterna, mas os homens não querem amar. Preferem morrer. E eu também prefiro. Prefiro a morte, prefiro o não ser, prefiro voltar ao nada, a viver sem o amor eterno. São Filipe Néri cantou que preferia o paraíso, mas já o vejo tão distante e tão pouco merecedor dele que não posso desejar mais isso. Não sem o amor. Então, se não posso amar...

... Eu também prefiro a morte. 

Que outra doçura pode haver ao cabo da existência de alguém que já não tem nada a querer ou desejar?

sábado, 22 de junho de 2024

O Monstro Condenado

Os dias têm passado de um modo meio etéreo, isto é, eu estou consciente de tudo, eu preto atenção a todos, eu consigo responder, interagir, e tudo mais, mas ainda assim tudo se passa diante de meus olhos meio como um filme em câmera lenta. Mas também não é bem isso, não é como se eu demorasse a entender, é simplesmente como se não importasse mais, como se nada mais importasse. É meio como ver meu próprio reflexo distorcido no metal, sei que aquela figura corresponde de algum modo a mim, mas o sei porque estou ali e não porque algo nela realmente se assemelhe comigo. É estranho, é como se não conseguisse distinguir com clareza os contornos, e tudo vai se tornando assim cada vez mais vago, vazio...

Tive contato com bastante gente hoje, e estou com um pouco de ressaca por isso, querendo silêncio e quietude. Amanhã infelizmente não poderei ter isso, tenho missas e reuniões, mas não tenho a quem possa pedir para me salvar, apenas o silêncio que me faz pensar que fui abandonado. Talvez eu seja uma criatura horrenda até mesmo para os deuses, todos que, em sua gradeza, olham para mim como um ser tão patético que não merece atenção. Não sou obra de alguma vileza ou covardia, não, como se alguém tivesse pensado em mim como forma de punição, não, nem mesmo isso. Não sou como aquelas aberrações de Scila ou Caribdes, criadas a imagem do caos e da destruição, com o propósito de serem sinal de medo e dor aos homens. Não. Sou apenas uma falha, um erro, algo que ninguém quer se aproximar, alguém para quem todos viraram a face.

Também eu viro minha face ao me ver no espelho. Tal criatura nem sequer deveria existir. Mas será que penso isso realmente ou será de novo um reflexo daquele meu desejo profundo de não ser?

Vim pensando em como sou um péssimo cristão. Não no sentido de viver hipocrisia moral, no sentido kantiano e tosco do termo, mas no sentido de que tenho grandes dificuldades em aceitar a ideia da salvação, de um Deus que deseja ficar próximo de nós. Na cosmologia cristã eu estou do lado da condenação, e se fosse hoje para o inferno consideraria completamente justo, afinal eu sou horrível. A condenação é justa e necessária. Mas sei que não iria sozinho. A única coisa que explica então é que isso não tem explicação, a salvação é uma vontade gratuita do Pai, que nos ama porque quer, não porque merecemos. 

Felizmente para os homens eu não sou Deus, pois se fosse, condenaria a todos.

"Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa." (Clarice Lispector)

sexta-feira, 21 de junho de 2024

O perfume do chá

Ta aí, hoje eu só queria poder ficar quieto. 

As dores de cabeça intensas de uma ciclagem recomeçaram. Exatamente uma semana. Droga. Mas, como sempre, ninguém o sabe, então só posso, porque é tudo que consigo, ficar de cara feia, fingindo que estou entendendo tudo quando, na verdade, só estou presente, mas em nada atento. E as pessoas continuam falando, e falando alto, e falando muito, e falando sobre coisas que não quero falar... Eu só queria que fosse socialmente aceitável ficar alguns dias quieto, sem contato e em silêncio. É absolutamente necessário para mim e absolutamente incompreensível para todos. Tem algumas coisas que eu preciso fazer, mas estou incapaz de resolver isso agora. 

Como posso proceder?

Como eu queria desaparecer! 

Como um cão covarde eu escolho e desejo no meu profundo sempre a saída mais fácil. Sim eu não quero resolver, eu não quero enfrentar, eu não quero lutar, eu não quero tratar, porque todas as soluções que se me apresentam, exigem de mim um esforço que eu não tenho a possibilidade de fazer.

Passei em frente ao telejornal rapidamente. As pessoas estão morrendo de calor na Índia, um incêndio em Atenas, plantações na China praticamente fritadas pelo sol, no Rio Grande do Sul as chuvas fizeram algumas cidades alagarem novamente. Não dá para assistir isso. Não é o fim do mundo, mas com certeza dá para ver daqui.

Queria poder conseguir te ajudar mais. Tomei uma quantidade grande de remédio e nada me fez dormir, vou ter que passar pela ciclagem acordado mas, pelo menos, a dor diminuiu. Mas eu não posso te ajudar, e queria poder que pode alugar um quarto perto da sua faculdade para não ficar seis horas por dia num ônibus cheio, queria poder te ajudar com as dívidas ou pelo menos ouvindo um pouco mais, queria poder te convidar para passar as festas de fim de ano com comigo em algum lugar especial, quem sabe em algum lugar da serra catarinense, aqui num devaneio onde eu não só tenho dinheiro mas também tenho sua vontade em passar algum tempo comigo. 

Levantei apenas para dizer essas palavras, que tenha calma nos próximos dias, respire fundo, faça uma chá, lembre que eu te amo e anote tudo que precisa fazer para se organizar. 

Precisei vir para casa, impossível suportar tanta dor dessa vez, ainda mais acompanhada de todo o turbilhão de um episódio misto que marca as minhas ciclagens, 

enfim, 

quero poder ficar quieto e dormir, 

no escuro me esconder, 

desaparecer. 

Tudo o que posso fazer no dia seguinte, no entanto, é aproveitar o perfume de uma caneca fumegante de chá.

"(...) Quando ando no meio de outras pessoas não me sinto bem. O que elas falam e o entusiasmo que demonstram nada têm a ver comigo. O mais curioso é que justamente quando estou na companhia delas é que me sinto mais forte. Me vem a ideia seguinte: se podem existir só com esses fragmentos de coisas, então eu também posso. Mas é quando estou sozinho e todas as comparações se reduzem a mim mesmo contra a história, contra o meu fim, contra as paredes, contra a minha própria respiração, que começam a ocorrer coisas estranhas. Sou um sujeito evidentemente fraco. Experimentei ler a bíblia, os filósofos, os poetas, mas para mim, de certo ponto, erraram de alvo. Ficam falando de uma coisa completamente diversa. Por isso há muito tempo desisti de ler. Encontro um pouco de conforto na bebida, no jogo e no sexo, e dessa forma me assemelho bastante a qualquer membro da comunidade, da cidade e do país; a única diferença é que não tenho o menor interesse em “vencer”, constituir família, ter casa própria, um emprego respeitável etc e tal. Portanto, lá estava eu: sem ter nada de intelectual, de artista; nem tampouco as raízes redentoras do homem comum. Me sentia dependurado com uma espécie de rótulo indefinido e muito receio, sim, que isso marcasse o início da loucura." (Charles Bukowski)

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Homens, anjos, lírios e monstros

Os dois estavam diferentes hoje, os dois rapazes bonitos que têm me chamado atenção ultimamente. Consegui, de algum modo, observá-los. Descobri o nome de um deles, Ruan, escrito no moletom que ele usa para cobrir a cabeça com o capote e dormir profundamente, mesmo em meio aos solavancos do ônibus. Achei que o nome combinou com a figura. Simples, porém forte. Ele me passa a imponência séria de uma pessoa que precisa ser cativada para lhe dar um sorriso. 

O outro, já desde a última vez que o vi estava mais desperto, não tinha o olhar triste de quase todos que levantam cedo e trabalham do outro lado da cidade, afinal ele vem de um bairro próximo ao meu e pega um ônibus que eu nem sei onde fica o ponto final. Ele agora estava atento às mensagens no celular, e algo no seu semblante mudara, estava de certo modo radiante, ou está tomando vitaminas, ou se apaixonou. 

Não pude observá-los por muito tempo, uma mulher se colocou entre o primeiro e eu, e logo precisei fazer a baldeação, quanto ao segundo, desço poucas paradas depois de embarcar, apenas para evitar caminhar logo cedo. 

É uma manhã fresca, a névoa densa se dissipou, o que já aprendi, significa que logo deve esquentar. Mas o clima melancólico que tem me dominado nos últimos dias me faz colocar os 14 Romances de Rachmaninoff para tocar, e fico então fitando o nada a minha frente, enquanto escuto a vocalise e tomo um café que ficou amargo demais. 

Observei uma outra figura que se apresentou a mim, essa já trazendo aquela aura idílica de anjo ou fada. Aquela delicadeza, aquela leveza, claro que me encantou e fiquei como que bobo olhando e sorrindo. Mas então, virei o rosto e vi meu reflexo no espelho num velho armário na minha sala. O contraste foi tão brutal que eu não somente fechei a tela mas também os olhos, tentando apagar da minha mente a figura horrível que se mostrava ali.

A pele áspera, não importando a quantidade de produtos que use, a barba grossa que não diminui nunca e mesmo quando a tiro ainda deixa uma faixa de pele marcada, as sobrancelhas saltadas, os lábios já roxos da micropigmentação que se desfez... Uma figura grotesca que encarava a pequena imagem de um anjo por entre as mãos. É uma verdade amarga para engolir. 

Aquela pele clara, que só de observar sei dizer o quanto deve ser macia, as bochechas rosadas e braços cândidos como uma deusa daquelas descritas por Homero. Os dedos delicados como lírios, tocando corpos imortais dispersando o frio e a sonolenta nostalgia. Também a proximidade daquele corpo, pequeno e esguio, tão leve como uma pétala, deve revelar perfume e tão inebriante e sensual quanto uma pluméria.

Talvez o café não tenha ficado amargo o suficiente. 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Soluções

Waiting in the Hotel Room - James Hart Dyke

Não sei como mudar de vida, como todos dizem para fazer. Estou doente, muito doente. Preciso ir ao médico, consultar talvez um psiquiatra, um endocrinologista e um nutricionista. Mas não quero ir ao médico, eles só vão me encher ainda mais de remédios. 

Me recomendaram terapias naturais ou alternativas, recomendaram alimentar com coisas mais naturais, mas as pessoas sabem o quanto isso custa? Dizem que eu deveria fazer exercícios, mas são quase sete da noite e eu só consegui sair da cama agora. E isso porque estou de folga, nos outros dias já chego tão cansado que não consigo fazer mais do que ouvir uma breve aula, assistir um episódio de série sem prestar atenção e logo dormir. Nem sempre consigo comer. 

Deveria me exercitar mais e estudar menos? Dizem que eu deveria trabalhar mais, ser o melhor no que faço e ser recompensado, mas só estou sendo recompensado com mais trabalho, nenhum aumento ou reconhecimento real. 

Também dizer que eu deveria trabalhar menos, a ideia do trabalho já me deprime doze horas antes de precisar ir trabalhar, então deveria me demitir? Por mais que meu salário seja uma vergonha pelo menos é melhor do que salário nenhum. A verdade é que todos têm soluções pros meus problemas. 

Menos eu.

"Minhas únicas paixões eram os livros e a música. E, como podem imaginar, levava uma vida solitária." (Haruki Murakami)

terça-feira, 18 de junho de 2024

O olhar que se foi

Não sei se ele notou a diferença, mas, durante toda aquela manhã, eu olhei para ele apenas uma vez. Nunca soube ao certo se ele sabia porque eu o olhava tanto, mas é impossível que ele nunca tivesse notado, já que o encarava com frequência constrangedora. Mas então, naquele domingo, nossos olhares que se cruzavam a todo instante, se cruzaram apenas uma vez. E não sei se ele notou a mudança também no brilho desse olhar: se antes eu o olhava com certa admiração, algo quase artístico, com quem olha atentamente as dobras de uma escultura fenomenal, eu tenho agora apenas um olhar vago, vazio e triste.

Em verdade, ele tem bem pouca relação com isso. O uso aqui apenas como ilustração, nada mais. Me recordo das primeiras vezes que o vi, ainda assustado com a cidade nova, mas ver um garoto tão bonito e tímido, escondendo o rosto atrás de uma franja e de uma máscara, me despertou certa curiosidade. Algumas semanas depois começamos a nos encontrar também na igreja, e eu sempre mantinha um olhar fixo nele, encantado como disse, como quem olha uma obra de arte preciosa. Mas reconheço que ele em si não é nenhum primor de beleza. Sim, é bonito, mas não como eu o idealizava. Seu amigo próximo é muito mais bonito, mas em nenhum momento me chamou atenção como ele. Em dado momento poderia dizer que quase me apaixonei. Mas nunca nos aproximamos. Nada mais do que algumas breves conversas constrangedoras online, mas os olhares persistiam. Até que então, tudo isso foi se arrefecendo…  

Ele começou a namorar, minha verdadeira paixão encontrou um muro transponível que precisei recuar e refletir sobre o que farei daqui em diante. E ele, o jovem acólito que, com sua alva, serve o altar e faz dessa visão um convite a entregar meu próprio ser ao santo altar, se tornou apenas um símbolo desse passado. Disse a um amigo: se tornou apenas mais um para o qual eu não signifiquei nada, talvez fosse apenas um maluco força barra que queria amigos. No fim foi apenas isso: apenas mais um para quem eu não fui nada, e a minha lembrança em sua mente se desvanecerá como fumaça por entre os dedos, desaparecendo completamente. 

Aquela visão idílica passou, aliás, toda visão poética passou, procuro agora cantar a poesia das pedras, olhando para elas e vendo apenas isso, pedra mesmo. Acho que meu olhar, meu único olhar, para ele, foi vazio e rápido, um lampejo. Resultado de um absoluto cansaço. 

"O que há em mim é sobretudo cansaço - 
Não disto nem daquilo, 
nem sequer de tudo ou de nada: 
cansaço assim mesmo, ele mesmo,
cansaço. 
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço." 

(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Oneiros e um Guerreiro Desconhecido

S. Rachmaninoff - Concerto para Piano No. 3 em Dm, Op. 30

Eu queria sonhar. Não, não é uma reflexão existencialista sobre ter um sonho, um objetivo de vida ou algo assim. Eu queria sonhar, do tipo deitar, dormir e ter imagens e sons na minha cabeça. Gosto da ideia dos sonhos, não tanto da busca de significados profundos ou coisa do tipo, só queria sonhar, quem sabe experimentar pisar na grama de algum cenário meio mágico, ou aqueles sonhos sem sentido com um toque apocalíptico, quem sabe ver algum ator de que gosto, e agora me aparecem na mente a imagem do Jeff Satur e do Pawin, mas poderia ser qualquer um. 

Queria não apenas dormir e apagar, exausto, só torcendo para conseguir desligar meu cérebro o suficiente para o corpo descansar. 

Mas infelizmente não parece ser suficiente. 

Será essa a expressão do desejo de uma vida menos desesperada e patética numa fuga para um universo onírico, possivelmente dopado e psicodélico?

Como será ter um mundo para onde possa fugir ou, pelo menos, me esconder?

Venho tentando trabalhar em novas imagens, e a escolhida para hoje me surgiu sob a inspiração do Concerto para Piano N° 3 do Rachmaninoff, um dos meus favoritos e não é nenhuma novidade, por motivos óbvios: após o sucesso estrondoso do Concerto N° 2 em que o compositor se permitiu explorar a própria depressão e a superação desse estado ele se aprofundou ainda mais nesses seus tempos obscuros e entregou uma peça que vai da melancolia ao delírio. 

A versão que escolhi, e que escuto pela terceira vez só hoje, é aquela apresentada pelo Yunchan Lim ao lado da Fort Worth Symphony Orchestra sob a batuta da maestrina Marin Alsop.

Já devo ter comentado muitas vezes como a aura etérea desse concerto, que se inicia envolto a um denso nevoeiro, é uma coisa esplêndida de ser contemplada. Pouco a pouco a cortina de névoa se abre a um cenário fantástico, algo como um pós-guerra na Terra Média de Tolkien, um pequeno guerreiro erguendo-se por entre corpos de amigos e inimigos, desolado, sem ter para onde ir e sem recordar de nada antes de toda a destruição e dor. 

Após a guerra os homens precisam lidar com uma batalha ainda mais difícil, embora visualmente menos intensa do que golpes entre espadas e lanças. É a batalha contra as lembranças desses tempos tenebrosos, tempos em que se esmaga o crânio dos inimigos e vê o pescoço dos amigos mais próximos verter em sangue ante as lâminas das hordas que atacam. Isso aterroriza o homem até o fim de seus dias. Veteranos de guerra, seja nos cenários de algum escritor fantástico ou das guerras que aconteceram e que ainda acontecem, deixam essa marca profunda e, se antes precisavam defender sua pátria, sua prole e seus bens de invasores que vinham de fora, o inimigo agora é um espírito que ataca por dentro. 

E então, naqueles anos silenciosos, os veteranos, não apenas das guerras reais em que se empunham espadas ou armas de fogo, mas das guerras que lutamos diariamente, se tornam uma sucessão melancólica de vislumbres dos quais fugimos. O segundo movimento então é a profunda melancolia dessa longa vida. Se o primeiro movimento trazia consigo a mescla da confusão ainda da batalha mesmo, pequenas expressões de confusão, medo, desespero e até raiva, o segundo traz um mergulho nesses anos sobre os quais poucos homens, mesmos dentre os mais corajosos, se aventuram. Os que consegue externar algo desses anos nos legaram alguns dos escritos mais brutais que podemos encontrar. 

Somos literalmente atacados pelo terceiro movimento (ele segue-se ao segundo em attacca, sem pausa): num rompante crescente da melancolia profunda o homem é lançado em imagens de delírio e sonhos alucinados. Seja acordado ou dormindo, é acossado pelas lembranças cruéis, e acalentado apenas pelo objetivo inicial da guerra: proteger aquilo que se ama. 

No fundo, travamos todos nossas próprias guerras, defendendo aquilo que amamos, tentando conquistar o que desejamos e sendo assombrados pelos fantasmas desses tempos. Entre lampejos de medo, de esperança, crianças e jovens cantam ao redor dele, enquanto levam suas roupas para lavar no rio, o tempo de guerra já passou. Os jovens agora cuidam do campo sob sua supervisão, as mulheres ainda tratam os ferimentos que, mesmo após muitos anos, ainda doem, seja de membros amputados ou de cicatrizes que ainda abrem em tempos de frio ou calor intenso. 

E o pobre guerreiro que, após a guerra ajudou a reconstruir uma pequena vila, ficou por ali mesmo, contemplando, ao fim dos dias, sob o pôr do sol que baixa por sobre as casinhas simples, mas refeitas com muito esforço, que ele conseguiu ajudar a proteger aquilo, aquela terra, aquelas pessoas, que todos amavam. Ainda entre a lucidez e um delírio febril, ele ergue um copo de aguardente em brinde aos transeuntes, bebe-o de uma só vez, e cai, finalmente, num rompante, numa última elevação do seu espírito. Eis a apoteose e a grande coda

Nessa apresentação em específico os aplausos ressoam por vários minutos, com gritos de euforia: o solista conseguiu captar a força daquele Rachmaninoff profundo que enfrentou novamente um trauma para conseguir traduzir em sua composição que se tornou uma estrela que passou a brilhar ali, diante dos olhos daqueles eleitos presentes naquela sala e também diante de mim que, dois anos depois, assiste com os olhos marejados e o coração palpitando forte a cada novo tema explorado. Yuncham Lim o fez de modo tão magistral que não apenas eu, mas tantos outros, desejariam que o compositor estivesse vivo para conseguir execução tão digna de uma peça tão temida por tantos pianistas muitos mais experientes. 

Mas, o que a imagem de um guerreiro desconhecido e traumatizado têm a ver com a minha imagem? Ora, acaso minhas lutas também não me perseguem e também eu não sou vezes engolido por nevoeiros, turbilhões e alucinações febris por conta da depressão. Rachmaninoff expressou de modo elevado e sublime a experiência que ele teve e que eu encontro agora como analogia para as minhas experiências. Enquanto caminho por uma rua, como a Rua das Palmeiras daqui de Joinville, tão distante das ruas de Moscou, de Dresden ou de Nova York por onde o compositor passou. Mas algo de profundo na experiência real do homem, do confronto com seus fantasmas e da sua parte mais obscura, me torna próximo dele. Então, de algum modo, essa música se agora parte de mim, enquanto simplesmente caminho como aquele guerreiro de minha imaginação. 

domingo, 16 de junho de 2024

Ódio e Ser

Queria que essas palavras me fossem secretas, mas não poder dizer isso para você faz com que eu tenha que dizê-las em algum lugar, como se isso aliviasse um pouco do peso que elas me trazem ao peito. 

Queria conseguir parar de pensar em você, em cada pequeno detalhe seu, como sua voz, seus cachos, suas costas largas ou seu sorriso. Inferno, eu fico pensando nisso mesmo tentando me concentrar em outras coisas, seja no trabalho ou nas flores da rua, mas nada me chama atenção quanto as lembranças que tenho de você. 

E claro que me odeio por isso.

Me odeio por ser vencido tão facilmente por uma vontade idiota que nunca se tornará real. 

Me odeio por ter essa carência tão latente.

Me odeio por tudo me ferir tanto, como se eu fosse uma grande ferida aberta, a todo momento ardente. 

É claro que me odeio por escrever de modo tão quebrado. 

Me odeio por perceber que isso reflete a fragmentariedade do meu próprio pensamento. 

Me odeio por ficar eufórico por tomar uns goles de energético. 

Me odeio por ser tão volátil. 

Me odeio por não ser mais inteligente, por não conseguir ser uma pessoa com mais dinheiro, ou com mais equilíbrio, de modo que pudesse levar uma vida normal. 

Me odeio por deixar essas palavras saírem assim, como torrente, sendo meu peito uma fonte de sangue e sentimentos que fluem com a violência de um rio revolto após longa noite de tormenta. 

Me odeio por precisar me esconder para chorar umas lágrimas rápidas assim. 

Me odeio porque apesar de esclarecido tudo, depois de todas as palavras, todas as dores que causei em mim mesmo e todo incômodo que causei em você, continuo pensando, em cada segundo do dia, que eu não sou bom o suficiente, como homem, como amor. 

E me odeio mais ainda quando paro para pensar sobre isso e chego a conclusão de que é verdade.

E me odeio porque sei que você diz que eu sou misterioso mas, na verdade, isso só significa que você não olha para mim o suficiente para entender meus sinais. 

Me odeio por cuspir tudo isso assim, como uma onde se choca na praia.

Me odeio por assentir silenciosamente que eu o deixaria desconfortável pessoalmente, porque algo não só no meu comportamento, mas na minha hecceidade, entranhado tão profundo no meu ser, é desconfortável aos outros. 

sábado, 15 de junho de 2024

Mudando o eixo

Queria seguir os passos do meu professor, o filósofo cujo nome é Sobrevivente, mas basta olhar de relance para mim mesmo para ver que ainda sou um, grande problema, sinal mais do que claro da grande imaturidade que ainda me toma. Estou longe de ser considerado filósofo e, como essa existência parece se comprazer em se estender indefinidamente, ainda tenho um longo caminho a percorrer, rumo a isto. 

Por enquanto tento me livrar do ambiente de constante banalidade em que estou. Mas até essa atenção me incomoda, pois parece que passo mais tempo sofrendo pelas banalidades do que realmente me livrando delas e aprendendo coisas mais elevadas. 

Bom, pelo menos perceber isso já é um passo. Agora me resta conseguir me fiar a uma firmeza de espírito. Preciso aprender a me posicionar, a seguir, seguir. Não vejo, olhando para o futuro, que outra opção tenho além de seguir. Parece ser essa vida a minha condenação, talvez por algum pecado esquecido. 

De todo modo continuo, não surpreso, mas cada dia mais descrente com relação ao outro e as possibilidades do homem. Cada dia acho que somos criaturas mais e mais patéticas. Se perdem em discussões, reuniões e confabulações que passam muito longe do objeto que pretendem tratar. Daí que a mente, e aqui me vejo com uma fraqueza tremenda, se cansa facilmente da quantidade de informações que recebe, mas que não contém em si nenhuma substância real. 

Acho que talvez seja o momento para, não podendo tomar uma decisão com uma força de vontade tão forte, que ao menos possa ir, pouco a pouco, mudando o eixo da minha ação, de modo que minha vontade também seja alterada. Não há muito que eu possa fazer, mas não tendo uma vontade forte e decidida, que eu possa sutilmente provocar uma mudança nela de modo a, mudando então o eixo da ação, provoque também uma mudança na própria vontade. 

Não estou dizendo que aquela data, a que marca o dia em que desisti efetivamente, não seja importante. Mas que talvez não tenha conseguido dar uma guinada como desejaria e, portanto, só posso aos poucos ir mudando agora, em pequenas atitudes. 

Um café de cada vez, respiro fundo e tento me concentrar apenas no perfume que levanta da caneca... Abro os olhos, a vida continua. 

"Foi o último tiro, 
medíocre farsante.
Ele tentou de novo.
Foi quem ele não era. 
Andou por sedutoras trilhas.
Fingiu encenar um teatro grego mas 
era somente um mero espectador 
da própria decadência.
Por fim, dormiu em cama estranha,
querendo nunca mais atuar.
Ele tentou de novo,
ele de novo continua a tentar."

(Eduardo Vespoli Paolucci)

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Dicotomia do querer

"Flores, tristes flores" de Maria Helena Saparolli

O que fazer quando o coração quer uma coisa e a mente quer outra? E quando se sabe que se pode ter nenhuma delas?

Meu coração quer continuar amando. Minha mente diz que é melhor nunca mais amar. E eu sei que ambas as coisas são impossíveis.

Para um apaixonado como o amor é uma realidade da qual não se pode fugir. O meu coração sempre vai tender ao amor, mesmo quando já tão desgastado e dolorido que esse amor se revele em formas menos agradáveis que as do doce amor. Já não o conheço sob essa forma, o amor me é hoje amargo, não como um remédio, no entanto, mas como veneno que enfraquece pouco a pouco. 

E minha mente, por mais que se inebrie em devaneios niilistas, sabe que não pode se furtar a sentir. Essa é minha condenação, minha luta: eu estou fadado a sentir demais. Com intensidade demais, o tempo todo, até que o sentir perverta a mente de tal modo que se revele no corpo as marcas daquilo que sente. Eu sou a superfície clara e translúcida de um abismo profundo, eu sinto o tempo todo. 

Não é como se eu tivesse o olhado o abismo por muito tempo, não, é mais como se eu olhasse, do fundo do abismo, e não visse mais a luz, tão perdido e absorto em mim mesmo. 

Só queria fechar os olhos e não pensar em ninguém. Só queria que minhas mãos não procurassem por ninguém nas noites escuras e frias, só queria não me arrepiar com a eletricidade entre mim e um estranho completo no ônibus só porque nossos braços se tocaram levemente. Só queria não sentir, por um minuto que fosse, que não preciso de alguém para preencher esse vazio que, de tão grande, já é maior do que eu mesmo. 

Mas, como faço eu agora para parar de sentir quando me vejo pior do que os vermes? Afinal os vermes também hão de tocar e devorar sua carne enquanto eu jamais poderei me aproximar de ti. E que desventura por pensar antes que não era o bastante por não ser... Mas agora sei que nem mesmo como homem eu sou o bastante. E por isso também sinto muito, sinto demais.  Só queria que houvesse um modo de não ser tão eu. 

Pensei muito sobre isso, mas cheguei a mesma conclusão de Machado de Assis: "...preferi dormir, que é um modo interino de morrer."

Ensaio sobre a dor

Ardor, a dor que arde em fogo. 
Véu que vela e que revela. 
Flores que se fecham, dobram sobre seus corpos, enrijecem os seus caules, de luto se vestem. 
Chovem pro alto em busca do abrigo, 
do abraço, 
do colo, 
do ninho que não mais encontram. 
Flores, tristes flores. 

Maria Helena Saparolli

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Manifesta escuridão

"Saturada de males se encontra a minh’alma, minha vida chegou junto às portas da morte." (Sl 87)

É impressionante como a vida dá errado nos mínimos detalhes. 

Essa máxima pode sair dos lábios de um pessimista ou de uma criança mimada, não me oponho que me considerem um e nem outro, de todo modo eu ainda vou olhar ao meu redor e notar a grande miséria que me rodeia e vou dizer, ainda que para mim mesmo em meu íntimo: é impressionante como a vida dá errado nos mínimos detalhes. 

De quem terá sido a ideia de uma existência tão patética, tão miserável, tão baixa, a ponto de ainda querer que os homens sejam o auge de alguma criação. Não, o homem não é a medida de todas as coisas nem tampouco é algo abaixo dos anjos, não, o homem é a mais baixa das criaturas. Os animais, em sua brutal estupidez, são infinitamente superiores ao homem que, em seus rompantes de racionalidade, é capaz de espalhar apenas a destruição e a mais completa decadência. A destruição provocada pelo tempo ou pela natureza não é nada se comparada com aquilo que podemos fazer. 

O homem é uma criatura patética, e é impressionante como a vida dá errado nos mínimos detalhes.

E o que eu, alguém que vê o erro em cada maldito detalhe, e que já abandonou qualquer resquício de esperança, deveria fazer?

Adormeci na força do ódio, por assim dizer, pensando apenas em mergulhar na profunda escuridão. Em verdade tudo o que havia no meu peito era isso, escuridão. E nem consigo dizer exatamente o que foi. Talvez tenha sido a mera comparação da centelha de alegria, talvez, por uma pequena conquista, em comparação com a imensidão da miséria humana, da absoluta pequenez do espírito. 

Não quero incorrer aqui, no entanto, no erro de apenas compactar a experiência humana nessas fórmulas que, expressando esse pessimismo quase niilista quanto a gênero humano, se não explorada, na verdade não quer dizer nada. Elas precisam ser aprofundadas e usadas como símbolos que apontam para uma série de outras realidades, essas, sim, expressas em formas compactas. 

Mas o que me marcou foi, uma vez mais, a constatação de que minha vida se resume atualmente a uma miserável existência: trabalho e durmo. Cansado demais para qualquer outra coisa, não consigo encontrar momentos, amigos ou dinheiro para sair. Não tenho a menor disposição. Passo o dia esperando e desejando apenas a minha cama e, quando chega a noite, quero apenas mergulhar em escuridão pois, como já disse, só quero de algum modo externar essa que tem sido a escuridão que ocupa meu peito. 

Nos últimos dias tive contato com um de profundo niilismo, que encontra valor na exploração de diversas questões sociais, ambientais, filosóficas, enfim, mas que não se importa em absoluto com a beleza. Ele mesmo o disse que não gosta de coisas belas e que não dá a mínima pra isso. Vi em nossas conversas que ele havia desistido de tudo, renegando a beleza e abraçando apenas o que lhe parecia importante por esse ou aquele ponto de vista. Eu, por outro lado, pensei que ter abrido mão de tudo o mais e ficado apenas com a beleza, mas não sei se isso é verdade. 

E já não vejo mais alegria em nada, e as risadas dos outros me incomodam, elas parecem não enxergar a estupidez que as cerca. Mas de fato são mais felizes. Será que ainda é possível ser feliz? Mas nem pensar demais nisso eu quero, eu só quero dormir. 

FUGA

Tudo se resume ao medo
de não suportar o peso
do mundo.

(Fabrício Oliveira)

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Olhando o passado

Pablo Picasso

É que de repente fiquei triste, por pensar em tantas coisas ao mesmo tempo. Triste por não ter economizado o suficiente, triste porque não consegui me organizar o bastante, triste porque não fui bom o bastante, porque continuo sempre cansado, porque tudo que tento fazer continua sendo medíocre, porque continuo sendo um ninguém, porque não realizei nada, minha casa não é minha, minhas coisas não são boas, eu não aprendi nada, não fiquei mais forte, nem mais inteligente, nem mais bonito e não estou ficando mais novo.

Fiquei triste porque fui rejeitado de novo e não quero amar de novo. Triste porque minha folga acabou, triste porque descansei, mas não o bastante. 

O bastante. 

Nunca é o bastante.

Não inteligente o bastante, ou bonito o bastante. 
Meu amor não é o bastante.

Amanhã começa tudo de novo. Essa rotina desgraçada. Ônibus cheio, pessoas chatas me enchendo de trabalho e dificultando tudo pra mim. Queria simplesmente desaparecer, quem sabe voar nessa brisa que entra pela minha janela, e nunca mais ter de ver nenhuma dessas pessoas.

Estou preso no eterno retorno. É uma sorte maldita.

Por isso fiquei triste do nada. Não foi do nada. Fiquei triste por ser esmagado pela verdade. Essa existência é uma droga.

E não foi uma tristeza qualquer, foi profunda, como se de repente fosse lançado num abismo oceânico e lá, no fundo, não vendo mais nem sinal da luz, só ouvia a voz dele, cada vez mais e mais distante.

Hoje o romantismo está no ar, afinal é Dia dos Namorados, mas isso também só faz eu me lembrar de que não fui o bastante. Olho para minha história então como um velho olharia, e veria que nada fez, nada realizou, nada foi suficiente. Agora, ao cabo dessa existência, resta apenas uma casca seca. 

"Também é preciso
regar
os jardins de pedra"

(Jorge Sousa Braga)

terça-feira, 11 de junho de 2024

Nossos caminhos

Claude Monet

Não é a primeira vez que digo que o cansaço, a depressão, ou como queiram chamar já que acho que se trata da existência mesma, me tirou o brilho e a vontade de viver. Percebo isso na melancolia em que me vi nos últimos dias que, muito embora agitados, mas o corpo não segue o ritmo do coração e, ao ver coisas que deveriam me emocionar profundamente, eu apenas assenti internamente. 

Sei que, para além do cansaço, estava cheio de remédios e, portanto, anestesiado para muitas coisas, mas pensar nisso agora me causa certo desconforto, que os poucos momentos para o qual fico a espera, se tornaram também eles vazios. Não seria de surpreender que a isso também me tirasse já que, ao que me parece, o tempo tudo destrói. Mas isso não é nenhuma novidade, nem para mim e nem para o gênero humano. 

Desde a aurora dos tempos nos maravilhamos e tememos essa que é a verdade mais visível e assustadora de todas: o tempo que passa sem que nada possamos fazer. Não adianta que eu faça a barba com mais frequência e gaste em cosméticos japoneses, isso só atenua leve e superficialmente alguns sinais que, no particular, são sinal da força avassaladora da qual nenhum de nós pode fugir. Montanhas são aplainadas, oceanos secam, folhas caem e arvores gigantescas caem como se fossem pequenos gravetos. O tempo dobra até o aço mais forte como se fosse papel, o que ele não faria com nossos corpos e nossa vontade?

Uma das coisas que sutilmente mexeu comigo foi a constatação do distanciamento. Aquilo que Oswaldo Montenegro já havia cantado muito bem: 

"Faça uma lista de grandes amigos. 
Quem você mais via há dez anos atrás? 
Quantos você ainda vê todo dia? 
Quantos você já não encontra mais?" 

Penso em muitos nomes, que me foram tão caros, tão próximos. Dormimos juntos, sorrimos juntos, fomos ao cinema, cantamos, demos as mãos, choramos... E hoje somos estranhos, apenas nomes nas redes sociais e sorrisos perdidos em meios às lembranças das fotos antigas. 

E ainda hoje vejo ainda a ação do tempo. Vejo que ainda hoje já me afasto de outras pessoas, com a diferença de que não vejo outras se aproximarem. Parece-me que a minha personalidade atual afasta a todos. Quanto aos mais próximos, que já não são tão próximos assim, a cada dia vejo que tomamos caminhos cada vez mais distantes, diferentes. E vejo isso ao prestar um pouco de atenção naquilo que amamos e que damos importância, vejo que eu não encontro par, vejo que não encontro nada além de pessoas que não entendem o que digo ou penso. 

Parece uma lamúria infindável, sei bem disso, e talvez o seja mesmo. Mas, em verdade, meu amor não é compreendido, meu cansaço não é visto, e então, se olho ao redor, me vejo apenas cada vez mais e mais sozinho. 

Seguimos por estradas diferentes, que certamente não nos levam ao mesmo caminho. 

Você percebe isso não é? 

Sei que sabe disso tão bem quanto eu, mas que não aceita essa verdade, assim como eu não aceitei por muito tempo a verdade de que você não me ama. Somos, afinal, pessoas que caminham em caminhos distintos. 

Deveria buscar amar outro, mas não consigo nem enxergar em mim a capacidade de voltar a amar e nem no outro a possibilidade do ser amado. Até aquele jovem que me encantava meses atrás, por quem tinha e alimentava certo quebranto por vê-lo todas as manhãs na parada de ônibus ou na missa, se tornou apenas mais um nome sem significado. 

Ao final não seremos mais do que isso na vida um do outro, nomes sem significado. 

E sabemos disso, 
sempre o soubemos. 
Sabíamos e fingíamos não saber. 

Assim como finge não ver que só há uma maneira de evitar que isso aconteça.

Caminhamos, mas em direções opostas
e apenas vemos agora um pouco das costas um do outro,
pois já chegamos perto da linha distante do horizonte.

Mas ainda há uma maneira, mas ela é apenas hipotética. 
No fim, o que conta é nossa vontade. 

Livre. 

E eu não posso forçar nada, nem mesmo meu coração, muito menos o seu. 

E essa é sua vontade!

Contra minha vontade, então
caminho sozinho. 

Você atravessa um belo caminho, árduo é verdade, mas que te levará a um jardim de delícias.

Não sei por onde vou, não sei para onde vou. 
Mas sei que não vou com você. 

"Deve haver maneira de se pôr o amor em dia sem que a vida continuamente o interrompa." 
(Evelyn Blaut)

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Um amor em alto mar

Não é a primeira vez que digo que o cansaço, a depressão, ou como queiram chamar já que acho que se trata da existência mesma, me tirou o brilho e a vontade de viver. Percebo isso na melancolia em que me vi nos últimos dias, muito embora agitados, mas o corpo não segue o ritmo do coração e, ao ver coisas que deveriam me emocionar profundamente, eu apenas assenti internamente. 

Sei que, para além do cansaço, estava cheio de remédios e, portanto, anestesiado para muitas coisas, mas pensar nisso agora me causa certo desconforto, que os poucos momentos para o qual fico a espera, se tornaram também eles vazios. Não seria de surpreender que a isso também me tirasse já que, ao que me parece, o tempo tudo destrói. Mas isso não é nenhuma novidade, nem para mim e nem para o gênero humano. 

Desde a aurora dos tempos nos maravilhamos e tememos essa que é a verdade mais visível e assustadora de todas: o tempo que passa sem que nada possamos fazer. Não adianta que eu faça a barba com mais frequência e gaste em cosméticos japoneses, isso só atenua leve e superficialmente alguns sinais que, no particular, são sinal da força avassaladora da qual nenhum de nós pode fugir. Montanhas são aplainadas, oceanos secam, folhas caem e arvores gigantescas caem como se fossem pequenos gravetos. O tempo dobra até o aço mais forte como se fosse papel, o que ele não faria com nossos corpos e nossa vontade?

Mas, talvez quando os índices de droga no meu sangue começavam a dispersar, uma cena me chamou atenção. 

Aquele homem irritado, naquela ilha contra sua vontade, finalmente demonstrara alguma reação além do tédio e da absoluta contrariedade. Navegando em alto mar ele corria de um canto a outro do barco, não parecia em nada o reclamão de instantes atrás, apontava para as ondas do azul mais belo que ele já vira, para as montanhas da ilha deixadas para trás, cobertas de vegetação verde brilhante, do belíssimo céu que se estendia infinitamente diante dele, salpicado de pedacinhos brancos de nuvem. Ele brilhava então numa euforia que seu guia particular, aquele que seu amigo contratara e o que o irritara desde o primeiro instante em que colocara os pés naquele ilha no fim do mundo, não tinha visto até então.

O jovem guia, a joia daquela ilha, disputado por mulheres e homens não só por sua beleza, mas pela sua prestatividade, pela sua simpatia e carisma incontestes, estava encantado com aquele homem. Sempre irritado, com a ilha, com o sol, com seu dialeto, com sua prestatividade, mas ainda de uma beleza inigualável. Aquele visitante era ainda mais bonito do que ele, e ele não tinha como discutir com isso. Ficara maravilhado, embora não tenha demonstrado, ao ver as fartas porções de pele que ele havia revelado em troca de cooperação. O jovem escritor, que havia se perdido num de seus trabalhos, buscava inspiração para uma cena de sexo, e tentara seduzir o homem, que resistiu por alguns instantes, mas aquela cena, o outro de pernas abertas a sua frente, com apenas uma pequena faixa do roupão de banho cobrindo seu sexo, os ombros nus e o olhar convidativo... Aquilo ficaria em sua memória ainda por um longo tempo.

Naquele barco ele não queria provocar o escritor, o deixaria quieto em seus pensamentos, feliz como uma criança, e talvez ele conseguisse voltar a escrever, o que quer que fosse. E então ele foi pescar alguns mariscos, sendo também, é claro, o melhor mergulhador daquela região. Surpreendeu-se ao retornar e ver aquele escritor, que se rodeara de uma personalidade fria e distante, chorando, preocupado com o mergulhador que desaparecera silenciosamente. 

- Mesmo que eu te odeie, eu não quero que você morra. Ou por acaso você quer me matar do coração? - O tom não só irritado, mas quase desesperado, a angústia daquelas palavras e daquelas lágrimas mostraram o diamante da ilha que aquele companheiro guardava consigo algum trauma. Quem será que terá partido diante dele para que ele tenha tanto medo assim da morte de um desconhecido. 

Ele não pensou duas quando o abraçou com força, num consolador abraço de urso, os fortes músculos envolvendo completamente o corpo pequeno do turista que, tentando se desvencilhar da investida daquele gigante, lutava também contra o instinto de o abraçar e, em meio a um abraço e de protestos, deixou suas lágrimas rolaram pelas costas do outro, se misturando com a água do mar que ainda escorria da roupa de mergulho. Depois que ele começara a se acalmar, o outro lhe deu um beijo no alto da testa, mostrando mais uma vez não só a sua habitual receptividade, mas uma genuína preocupação, um gesto de carinho que ele mesmo não entendia muito bem, achava que poderia ser apenas atração, mas que logo mostraria ser bem mais do que isso: era o desejo que nascia no seu coração, de cuidar daquele homem ríspido, até que ele se abrisse novamente para a vida, para o amor. 

domingo, 9 de junho de 2024

Sião Desfigurada

"Fenece toda a beleza,
Sião, tão desfigurada,
Seus chefes são cães sem dono,
Parecem rês enxotada,
Caminham cambaleantes,
Tocados qual vil manada."

(Lamentos de Jeremias)

Não sei como fui deixar as coisas chegarem a esse ponto, perdi o controle há muito tempo e vou precisar de muita força para retomar as rédeas da minha própria vida. Isso porque hoje todos só conseguem enxergar o homem fraco e que não consegue dizer não, que não consegue se posicionar, e por isso eu acabo me sobrecarregando mais do que qualquer um e, sem nunca verem isso, continuam exigindo mais e mais de mim. Quando, depois de algum tempo, as coisas se tornam insustentáveis, e eu acabo falhando com eles, acabo me tornando inútil e descartável. Mas, quando chegam a esse ponto, significa que para mim me tornei inútil há muito, muito tempo.

Mesmo em dias importantes, em que vejo as pessoas chegarem em procissão desfilando seus estilos alternativos, cada um confortável consigo mesmo, eu me olho no espelho e vejo o semblante de um velho homem cansado. Apenas isso. As roupas amarrotadas eram as melhores que tinha. As compras que fiz meses atrás não adiantaram de nada, continuo sendo feio e andando desarrumado. Até a maquiagem me dá uma aparência ainda mais cansada e velha, como alguém completamente destruído por dentro que, agora, já desmorona por fora também. 

No fim, vejo que não sou mais do que apenas isso. 

Era, sim, cheio de sonhos, mutos deles impossíveis, mas, ainda assim, sonhos, que me faziam os olhos brilhar e sorrir alegremente. Mas, na lista dos sonhos que tinha, de todos eu desisti de sonhar. Tantos amores, deles sobraram apenas as cicatrizes que cobrem meu corpo e que muitos nem sabem que existem. Não sei se me reconheço nas fotos do passado ou no espelho de agora. Não sei se sobrou algum Eu, além do Eu profundo que sustentou todos os outros Eus que se foram, que se desfizeram. 

Por isso, talvez eu possa tomar ainda alguma rédea da minha vida ainda, ou do que restou dela, da casca que se desfaz pouco a pouco, em pequenas decisões, como hoje que vou dormir, não importa quem precisa de mim, meu corpo não tem como se mover, minha mente está paralisada, não conseguiria ajudar mais ninguém porque não sobrou nada, levaram tudo, tudo. 

Meus planos para hoje são simples: me sobrou uma pequeníssima margem de manobra. Não ouvir e nem responder à irresponsabilidade de outros, meu descanso é justo e necessário. Vou ou então dormir, recuperar primeiro as forças do corpo que se foram nos últimos dias e depois, quem sabe, me ocupar de tentar melhorar algo da minha rotina para me fortalecer e ficar um pouco mais resistente. Dormirei o dia inteiro sob efeito de remédios, aumentei ainda mais a dose. 

Isso porque, muito embora não tenha sonhos, tenho um compromisso profundo com a verdade, que não envolve cargos, títulos e nada do tipo, mas envolve aprender mais sobre o que amor e, com isso, ainda que ninguém queira ouvir sobre, essa verdade, que é uma dentre as irradiações da Verdade revelada, se assentará na minha alma imortal, e é isso que apresentarei diante do Justo Juiz. Eis tudo o que fiz, não foi muito, pois me perdi em meio a confusão do mundo, mas foi de coração e de sinceridade profunda que me dediquei a isto. 

"Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse "angústia", mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível... Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. "Falta alguma coisa", repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que era." (Nelson Rodrigues)

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Quase lágrimas, outra vez

Me senti leve, mas não consegui encontrar tempo para deixar as lágrimas rolarem. Imaginei indo ao banheiro alguns minutos e fazendo isso. Impressionante como, mesmo em meio a tantas questões tão diferentes, eu ainda penso nele. Apenas nele. Mas de muitos, como falam os profetas.

Quase como Jeremias eu profetizo a dor da solidão uma vez mais. E tento aprender com a dor da Jerusalém desterrada, seguindo o conselho de Ovídio recordado por uma amiga, de que esta dor um dia possa me ser útil. 

E muitos sentimentos ao mesmo tempo. 

Ansiedade, 

medo, 

raiva, 

desejo,

tristeza profunda,

desespero e...

amor

amor?

Aquele dia me senti leve. Depois senti algo próximo do luto, e é isso que venho transmutando no momento, em algo que ainda não sei bem o que será. Sei que hoje, se tivesse tido tempo, teria chorado um pouco. 

"Era justo que, vez por outra, pelo menos a alegria viesse recompensar os que se contentam com o homem e seu terrível amor." (Albert Camus)

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Um esboço de sorriso e outros aforismos

Ele estava diferente hoje, em vários meses em que o vejo pela manhã nos ônibus da vida, é a primeira vez que o vi esboçar um sorriso. Não sorriu de verdade, mas enquanto fitava atentamente a tela do celular seu semblante não era o sério e sonolento de sempre, mas desperto e algo contente. Em algum momento inclusive vi um certo esboço, os lábios pálidos se contraindo nas bochechas. Com quem será que ele conversava? O que essa pessoa teria lhe dito? Não me preocupei em pensar tanto assim, mas admito que sorri ao ver aquela imagem.  

Sei que ninguém jamais deve ler as minhas mensagens sorrindo assim, então me contentei em ver aquela cena breve, durante duas ou três paradas antes de meu trabalho. Simples, um quase sorriso matinal. 

Bem, continuei seguindo meu caminho nessa terça-feira fria, com menos agasalhos do que deveria. Me recordo que, no último fim de semana, concordei em começar a cantar com mais frequência na igreja, o que significa mais compromissos, e hoje já temos um ensaio marcado. Só devo chegar em casa por volta das 21h. Não deveria ter concordado, já estou mentalmente cansado agora, queria poder voltar para minha cama, mas não queria levantar amanhã, queria poder simplesmente ficar lá. É tão quentinha. 

Qual o problema das pessoas em querer que eu saia de casa? Eu devia ter enchido a cara no domingo e me entupido de remédio por cima do álcool. Droga. Se tivesse ficado doente ou morrido, não precisaria levantar e ver pessoas. 

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Breve reflexão sobre o tempo: tudo tem seu tempo, e geralmente somos incapazes de ver o quadro geral das coisas. No todo, cada particular passa a ter sentido. É apenas então diante do todo que as partes encontram seu significado. Muitas das dúvidas, injustiças, tendências, nos parecem estranhas, e caímos então no desespero de olhar ao nosso redor e ver apenas a destruição e a decadência por toda parte. Mas no conjunto isso deve fazer algum sentido. Com o tempo, como canta Oswaldo Montenegro, as coisas que antes escondíamos se tornam bobas, sem nenhuma importância. "Quantos segredos que você guardava? Hoje são bobos, ninguém quer saber."

O tempo é essa coisa então que nos obriga a viver para nos oferecer algum sentido. Vivemos nessa terra confusa e depois jogam um punhado de terra sobre a gente. E isso lá é resposta?

Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

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Ontem foi um completo caos, e hoje que eu acreditava que iria conseguir descansar um pouco, já vejo que não será possível também. Simplesmente não. Tenho uma longa e exaustiva reunião de tarde no trabalho e uma mais longa ainda à noite na igreja. Recebi hoje de manhã e o dinheiro não foi o bastante para pagar tudo, além disso, precisei fazer dois empréstimos pra conseguir comprar uma TV nova. Mas Gabriel, uma TV nova é realmente necessário? Sim, absolutamente. Imagina trabalhar esse tanto e não poder assistir meus BLs numa tela decente quando chegar em casa? E, ao mesmo tempo toda vez que parece que eu vou conseguir melhorar um pouco as coisas, elas desandam completamente. É como estar sempre a mercê de uma entropia que, não permitindo a destruição total, absoluta e completa do ser, que a esse ponto me seria uma bem-aventurança, apenas impede que eu avance, em todos os sentidos. Após semanas conseguindo me focar nos estudos de História da Igreja, simplesmente faz uma semana que não consigo ler e nem assistir a uma aula sequer. Acumulei mais dívidas. Meu coração está aos pedaços, algumas palavras ainda ecoam na minha mente e me cortam. A morte como sendo melhor do estar com alguém como eu. Queria poder me deitar um pouco e esperar as coisas pararem de girar. Caralho, preciso mesmo ir pra essa reunião?

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"As coisas não dão certo. Nunca deram certo. Não foram feitas para dar certo. Nós é que temos a ambição do alinhamento e da simetria." (Carlos Machado)