Sião, tão desfigurada,
Seus chefes são cães sem dono,
Parecem rês enxotada,
Caminham cambaleantes,
Tocados qual vil manada."
(Lamentos de Jeremias)
Não sei como fui deixar as coisas chegarem a esse ponto, perdi o controle há muito tempo e vou precisar de muita força para retomar as rédeas da minha própria vida. Isso porque hoje todos só conseguem enxergar o homem fraco e que não consegue dizer não, que não consegue se posicionar, e por isso eu acabo me sobrecarregando mais do que qualquer um e, sem nunca verem isso, continuam exigindo mais e mais de mim. Quando, depois de algum tempo, as coisas se tornam insustentáveis, e eu acabo falhando com eles, acabo me tornando inútil e descartável. Mas, quando chegam a esse ponto, significa que para mim me tornei inútil há muito, muito tempo.
Mesmo em dias importantes, em que vejo as pessoas chegarem em procissão desfilando seus estilos alternativos, cada um confortável consigo mesmo, eu me olho no espelho e vejo o semblante de um velho homem cansado. Apenas isso. As roupas amarrotadas eram as melhores que tinha. As compras que fiz meses atrás não adiantaram de nada, continuo sendo feio e andando desarrumado. Até a maquiagem me dá uma aparência ainda mais cansada e velha, como alguém completamente destruído por dentro que, agora, já desmorona por fora também.
No fim, vejo que não sou mais do que apenas isso.
Era, sim, cheio de sonhos, mutos deles impossíveis, mas, ainda assim, sonhos, que me faziam os olhos brilhar e sorrir alegremente. Mas, na lista dos sonhos que tinha, de todos eu desisti de sonhar. Tantos amores, deles sobraram apenas as cicatrizes que cobrem meu corpo e que muitos nem sabem que existem. Não sei se me reconheço nas fotos do passado ou no espelho de agora. Não sei se sobrou algum Eu, além do Eu profundo que sustentou todos os outros Eus que se foram, que se desfizeram.
Por isso, talvez eu possa tomar ainda alguma rédea da minha vida ainda, ou do que restou dela, da casca que se desfaz pouco a pouco, em pequenas decisões, como hoje que vou dormir, não importa quem precisa de mim, meu corpo não tem como se mover, minha mente está paralisada, não conseguiria ajudar mais ninguém porque não sobrou nada, levaram tudo, tudo.
Meus planos para hoje são simples: me sobrou uma pequeníssima margem de manobra. Não ouvir e nem responder à irresponsabilidade de outros, meu descanso é justo e necessário. Vou ou então dormir, recuperar primeiro as forças do corpo que se foram nos últimos dias e depois, quem sabe, me ocupar de tentar melhorar algo da minha rotina para me fortalecer e ficar um pouco mais resistente. Dormirei o dia inteiro sob efeito de remédios, aumentei ainda mais a dose.
Isso porque, muito embora não tenha sonhos, tenho um compromisso profundo com a verdade, que não envolve cargos, títulos e nada do tipo, mas envolve aprender mais sobre o que amor e, com isso, ainda que ninguém queira ouvir sobre, essa verdade, que é uma dentre as irradiações da Verdade revelada, se assentará na minha alma imortal, e é isso que apresentarei diante do Justo Juiz. Eis tudo o que fiz, não foi muito, pois me perdi em meio a confusão do mundo, mas foi de coração e de sinceridade profunda que me dediquei a isto.
"Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse "angústia", mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível... Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. "Falta alguma coisa", repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que era." (Nelson Rodrigues)
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