segunda-feira, 17 de junho de 2024

Oneiros e um Guerreiro Desconhecido

S. Rachmaninoff - Concerto para Piano No. 3 em Dm, Op. 30

Eu queria sonhar. Não, não é uma reflexão existencialista sobre ter um sonho, um objetivo de vida ou algo assim. Eu queria sonhar, do tipo deitar, dormir e ter imagens e sons na minha cabeça. Gosto da ideia dos sonhos, não tanto da busca de significados profundos ou coisa do tipo, só queria sonhar, quem sabe experimentar pisar na grama de algum cenário meio mágico, ou aqueles sonhos sem sentido com um toque apocalíptico, quem sabe ver algum ator de que gosto, e agora me aparecem na mente a imagem do Jeff Satur e do Pawin, mas poderia ser qualquer um. 

Queria não apenas dormir e apagar, exausto, só torcendo para conseguir desligar meu cérebro o suficiente para o corpo descansar. 

Mas infelizmente não parece ser suficiente. 

Será essa a expressão do desejo de uma vida menos desesperada e patética numa fuga para um universo onírico, possivelmente dopado e psicodélico?

Como será ter um mundo para onde possa fugir ou, pelo menos, me esconder?

Venho tentando trabalhar em novas imagens, e a escolhida para hoje me surgiu sob a inspiração do Concerto para Piano N° 3 do Rachmaninoff, um dos meus favoritos e não é nenhuma novidade, por motivos óbvios: após o sucesso estrondoso do Concerto N° 2 em que o compositor se permitiu explorar a própria depressão e a superação desse estado ele se aprofundou ainda mais nesses seus tempos obscuros e entregou uma peça que vai da melancolia ao delírio. 

A versão que escolhi, e que escuto pela terceira vez só hoje, é aquela apresentada pelo Yunchan Lim ao lado da Fort Worth Symphony Orchestra sob a batuta da maestrina Marin Alsop.

Já devo ter comentado muitas vezes como a aura etérea desse concerto, que se inicia envolto a um denso nevoeiro, é uma coisa esplêndida de ser contemplada. Pouco a pouco a cortina de névoa se abre a um cenário fantástico, algo como um pós-guerra na Terra Média de Tolkien, um pequeno guerreiro erguendo-se por entre corpos de amigos e inimigos, desolado, sem ter para onde ir e sem recordar de nada antes de toda a destruição e dor. 

Após a guerra os homens precisam lidar com uma batalha ainda mais difícil, embora visualmente menos intensa do que golpes entre espadas e lanças. É a batalha contra as lembranças desses tempos tenebrosos, tempos em que se esmaga o crânio dos inimigos e vê o pescoço dos amigos mais próximos verter em sangue ante as lâminas das hordas que atacam. Isso aterroriza o homem até o fim de seus dias. Veteranos de guerra, seja nos cenários de algum escritor fantástico ou das guerras que aconteceram e que ainda acontecem, deixam essa marca profunda e, se antes precisavam defender sua pátria, sua prole e seus bens de invasores que vinham de fora, o inimigo agora é um espírito que ataca por dentro. 

E então, naqueles anos silenciosos, os veteranos, não apenas das guerras reais em que se empunham espadas ou armas de fogo, mas das guerras que lutamos diariamente, se tornam uma sucessão melancólica de vislumbres dos quais fugimos. O segundo movimento então é a profunda melancolia dessa longa vida. Se o primeiro movimento trazia consigo a mescla da confusão ainda da batalha mesmo, pequenas expressões de confusão, medo, desespero e até raiva, o segundo traz um mergulho nesses anos sobre os quais poucos homens, mesmos dentre os mais corajosos, se aventuram. Os que consegue externar algo desses anos nos legaram alguns dos escritos mais brutais que podemos encontrar. 

Somos literalmente atacados pelo terceiro movimento (ele segue-se ao segundo em attacca, sem pausa): num rompante crescente da melancolia profunda o homem é lançado em imagens de delírio e sonhos alucinados. Seja acordado ou dormindo, é acossado pelas lembranças cruéis, e acalentado apenas pelo objetivo inicial da guerra: proteger aquilo que se ama. 

No fundo, travamos todos nossas próprias guerras, defendendo aquilo que amamos, tentando conquistar o que desejamos e sendo assombrados pelos fantasmas desses tempos. Entre lampejos de medo, de esperança, crianças e jovens cantam ao redor dele, enquanto levam suas roupas para lavar no rio, o tempo de guerra já passou. Os jovens agora cuidam do campo sob sua supervisão, as mulheres ainda tratam os ferimentos que, mesmo após muitos anos, ainda doem, seja de membros amputados ou de cicatrizes que ainda abrem em tempos de frio ou calor intenso. 

E o pobre guerreiro que, após a guerra ajudou a reconstruir uma pequena vila, ficou por ali mesmo, contemplando, ao fim dos dias, sob o pôr do sol que baixa por sobre as casinhas simples, mas refeitas com muito esforço, que ele conseguiu ajudar a proteger aquilo, aquela terra, aquelas pessoas, que todos amavam. Ainda entre a lucidez e um delírio febril, ele ergue um copo de aguardente em brinde aos transeuntes, bebe-o de uma só vez, e cai, finalmente, num rompante, numa última elevação do seu espírito. Eis a apoteose e a grande coda

Nessa apresentação em específico os aplausos ressoam por vários minutos, com gritos de euforia: o solista conseguiu captar a força daquele Rachmaninoff profundo que enfrentou novamente um trauma para conseguir traduzir em sua composição que se tornou uma estrela que passou a brilhar ali, diante dos olhos daqueles eleitos presentes naquela sala e também diante de mim que, dois anos depois, assiste com os olhos marejados e o coração palpitando forte a cada novo tema explorado. Yuncham Lim o fez de modo tão magistral que não apenas eu, mas tantos outros, desejariam que o compositor estivesse vivo para conseguir execução tão digna de uma peça tão temida por tantos pianistas muitos mais experientes. 

Mas, o que a imagem de um guerreiro desconhecido e traumatizado têm a ver com a minha imagem? Ora, acaso minhas lutas também não me perseguem e também eu não sou vezes engolido por nevoeiros, turbilhões e alucinações febris por conta da depressão. Rachmaninoff expressou de modo elevado e sublime a experiência que ele teve e que eu encontro agora como analogia para as minhas experiências. Enquanto caminho por uma rua, como a Rua das Palmeiras daqui de Joinville, tão distante das ruas de Moscou, de Dresden ou de Nova York por onde o compositor passou. Mas algo de profundo na experiência real do homem, do confronto com seus fantasmas e da sua parte mais obscura, me torna próximo dele. Então, de algum modo, essa música se agora parte de mim, enquanto simplesmente caminho como aquele guerreiro de minha imaginação. 

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