quinta-feira, 20 de junho de 2024

Homens, anjos, lírios e monstros

Os dois estavam diferentes hoje, os dois rapazes bonitos que têm me chamado atenção ultimamente. Consegui, de algum modo, observá-los. Descobri o nome de um deles, Ruan, escrito no moletom que ele usa para cobrir a cabeça com o capote e dormir profundamente, mesmo em meio aos solavancos do ônibus. Achei que o nome combinou com a figura. Simples, porém forte. Ele me passa a imponência séria de uma pessoa que precisa ser cativada para lhe dar um sorriso. 

O outro, já desde a última vez que o vi estava mais desperto, não tinha o olhar triste de quase todos que levantam cedo e trabalham do outro lado da cidade, afinal ele vem de um bairro próximo ao meu e pega um ônibus que eu nem sei onde fica o ponto final. Ele agora estava atento às mensagens no celular, e algo no seu semblante mudara, estava de certo modo radiante, ou está tomando vitaminas, ou se apaixonou. 

Não pude observá-los por muito tempo, uma mulher se colocou entre o primeiro e eu, e logo precisei fazer a baldeação, quanto ao segundo, desço poucas paradas depois de embarcar, apenas para evitar caminhar logo cedo. 

É uma manhã fresca, a névoa densa se dissipou, o que já aprendi, significa que logo deve esquentar. Mas o clima melancólico que tem me dominado nos últimos dias me faz colocar os 14 Romances de Rachmaninoff para tocar, e fico então fitando o nada a minha frente, enquanto escuto a vocalise e tomo um café que ficou amargo demais. 

Observei uma outra figura que se apresentou a mim, essa já trazendo aquela aura idílica de anjo ou fada. Aquela delicadeza, aquela leveza, claro que me encantou e fiquei como que bobo olhando e sorrindo. Mas então, virei o rosto e vi meu reflexo no espelho num velho armário na minha sala. O contraste foi tão brutal que eu não somente fechei a tela mas também os olhos, tentando apagar da minha mente a figura horrível que se mostrava ali.

A pele áspera, não importando a quantidade de produtos que use, a barba grossa que não diminui nunca e mesmo quando a tiro ainda deixa uma faixa de pele marcada, as sobrancelhas saltadas, os lábios já roxos da micropigmentação que se desfez... Uma figura grotesca que encarava a pequena imagem de um anjo por entre as mãos. É uma verdade amarga para engolir. 

Aquela pele clara, que só de observar sei dizer o quanto deve ser macia, as bochechas rosadas e braços cândidos como uma deusa daquelas descritas por Homero. Os dedos delicados como lírios, tocando corpos imortais dispersando o frio e a sonolenta nostalgia. Também a proximidade daquele corpo, pequeno e esguio, tão leve como uma pétala, deve revelar perfume e tão inebriante e sensual quanto uma pluméria.

Talvez o café não tenha ficado amargo o suficiente. 

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