quarta-feira, 5 de junho de 2024

Um esboço de sorriso e outros aforismos

Ele estava diferente hoje, em vários meses em que o vejo pela manhã nos ônibus da vida, é a primeira vez que o vi esboçar um sorriso. Não sorriu de verdade, mas enquanto fitava atentamente a tela do celular seu semblante não era o sério e sonolento de sempre, mas desperto e algo contente. Em algum momento inclusive vi um certo esboço, os lábios pálidos se contraindo nas bochechas. Com quem será que ele conversava? O que essa pessoa teria lhe dito? Não me preocupei em pensar tanto assim, mas admito que sorri ao ver aquela imagem.  

Sei que ninguém jamais deve ler as minhas mensagens sorrindo assim, então me contentei em ver aquela cena breve, durante duas ou três paradas antes de meu trabalho. Simples, um quase sorriso matinal. 

Bem, continuei seguindo meu caminho nessa terça-feira fria, com menos agasalhos do que deveria. Me recordo que, no último fim de semana, concordei em começar a cantar com mais frequência na igreja, o que significa mais compromissos, e hoje já temos um ensaio marcado. Só devo chegar em casa por volta das 21h. Não deveria ter concordado, já estou mentalmente cansado agora, queria poder voltar para minha cama, mas não queria levantar amanhã, queria poder simplesmente ficar lá. É tão quentinha. 

Qual o problema das pessoas em querer que eu saia de casa? Eu devia ter enchido a cara no domingo e me entupido de remédio por cima do álcool. Droga. Se tivesse ficado doente ou morrido, não precisaria levantar e ver pessoas. 

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Breve reflexão sobre o tempo: tudo tem seu tempo, e geralmente somos incapazes de ver o quadro geral das coisas. No todo, cada particular passa a ter sentido. É apenas então diante do todo que as partes encontram seu significado. Muitas das dúvidas, injustiças, tendências, nos parecem estranhas, e caímos então no desespero de olhar ao nosso redor e ver apenas a destruição e a decadência por toda parte. Mas no conjunto isso deve fazer algum sentido. Com o tempo, como canta Oswaldo Montenegro, as coisas que antes escondíamos se tornam bobas, sem nenhuma importância. "Quantos segredos que você guardava? Hoje são bobos, ninguém quer saber."

O tempo é essa coisa então que nos obriga a viver para nos oferecer algum sentido. Vivemos nessa terra confusa e depois jogam um punhado de terra sobre a gente. E isso lá é resposta?

Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

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Ontem foi um completo caos, e hoje que eu acreditava que iria conseguir descansar um pouco, já vejo que não será possível também. Simplesmente não. Tenho uma longa e exaustiva reunião de tarde no trabalho e uma mais longa ainda à noite na igreja. Recebi hoje de manhã e o dinheiro não foi o bastante para pagar tudo, além disso, precisei fazer dois empréstimos pra conseguir comprar uma TV nova. Mas Gabriel, uma TV nova é realmente necessário? Sim, absolutamente. Imagina trabalhar esse tanto e não poder assistir meus BLs numa tela decente quando chegar em casa? E, ao mesmo tempo toda vez que parece que eu vou conseguir melhorar um pouco as coisas, elas desandam completamente. É como estar sempre a mercê de uma entropia que, não permitindo a destruição total, absoluta e completa do ser, que a esse ponto me seria uma bem-aventurança, apenas impede que eu avance, em todos os sentidos. Após semanas conseguindo me focar nos estudos de História da Igreja, simplesmente faz uma semana que não consigo ler e nem assistir a uma aula sequer. Acumulei mais dívidas. Meu coração está aos pedaços, algumas palavras ainda ecoam na minha mente e me cortam. A morte como sendo melhor do estar com alguém como eu. Queria poder me deitar um pouco e esperar as coisas pararem de girar. Caralho, preciso mesmo ir pra essa reunião?

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"As coisas não dão certo. Nunca deram certo. Não foram feitas para dar certo. Nós é que temos a ambição do alinhamento e da simetria." (Carlos Machado)

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