terça-feira, 18 de junho de 2024

O olhar que se foi

Não sei se ele notou a diferença, mas, durante toda aquela manhã, eu olhei para ele apenas uma vez. Nunca soube ao certo se ele sabia porque eu o olhava tanto, mas é impossível que ele nunca tivesse notado, já que o encarava com frequência constrangedora. Mas então, naquele domingo, nossos olhares que se cruzavam a todo instante, se cruzaram apenas uma vez. E não sei se ele notou a mudança também no brilho desse olhar: se antes eu o olhava com certa admiração, algo quase artístico, com quem olha atentamente as dobras de uma escultura fenomenal, eu tenho agora apenas um olhar vago, vazio e triste.

Em verdade, ele tem bem pouca relação com isso. O uso aqui apenas como ilustração, nada mais. Me recordo das primeiras vezes que o vi, ainda assustado com a cidade nova, mas ver um garoto tão bonito e tímido, escondendo o rosto atrás de uma franja e de uma máscara, me despertou certa curiosidade. Algumas semanas depois começamos a nos encontrar também na igreja, e eu sempre mantinha um olhar fixo nele, encantado como disse, como quem olha uma obra de arte preciosa. Mas reconheço que ele em si não é nenhum primor de beleza. Sim, é bonito, mas não como eu o idealizava. Seu amigo próximo é muito mais bonito, mas em nenhum momento me chamou atenção como ele. Em dado momento poderia dizer que quase me apaixonei. Mas nunca nos aproximamos. Nada mais do que algumas breves conversas constrangedoras online, mas os olhares persistiam. Até que então, tudo isso foi se arrefecendo…  

Ele começou a namorar, minha verdadeira paixão encontrou um muro transponível que precisei recuar e refletir sobre o que farei daqui em diante. E ele, o jovem acólito que, com sua alva, serve o altar e faz dessa visão um convite a entregar meu próprio ser ao santo altar, se tornou apenas um símbolo desse passado. Disse a um amigo: se tornou apenas mais um para o qual eu não signifiquei nada, talvez fosse apenas um maluco força barra que queria amigos. No fim foi apenas isso: apenas mais um para quem eu não fui nada, e a minha lembrança em sua mente se desvanecerá como fumaça por entre os dedos, desaparecendo completamente. 

Aquela visão idílica passou, aliás, toda visão poética passou, procuro agora cantar a poesia das pedras, olhando para elas e vendo apenas isso, pedra mesmo. Acho que meu olhar, meu único olhar, para ele, foi vazio e rápido, um lampejo. Resultado de um absoluto cansaço. 

"O que há em mim é sobretudo cansaço - 
Não disto nem daquilo, 
nem sequer de tudo ou de nada: 
cansaço assim mesmo, ele mesmo,
cansaço. 
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço." 

(Álvaro de Campos)

Nenhum comentário:

Postar um comentário