segunda-feira, 3 de junho de 2024

A fortaleza depois da névoa


"Em dias mais jovens, de manhã eu ria
De tarde chorava; agora, já mais velho,
Começo o meu dia em dúvidas, porém
Sagrado e sereno me é o seu final."

(Friedrich Holderlin)

Acho bonito os dias em que o nevoeiro cobre toda a cidade pela manhã. Ao abrir a janela a névoa matutina dá um ar meio sobrenatural ao mundo, e me lembro de alguns jogos e filmes da infância, como Silent Hill e o nevoeiro. Nesses dias, ainda que o vento frio machuque um pouco a pele eu gosto de andar e sentir como se entrasse naquela névoa, como se por ela passasse pelos umbrais de um mundo diferente. 

O que vou encontrar após o véu? Um gigantesco castelo, rodeado por uma imensa muralha de cristal, agora deixada para trás em forma de névoa que dissipa. Esse castelo (ou seria uma fortaleza?) guarda dentro de si segredos de tempos imemoriais. Guardiões caminham por seus corredores em um silêncio cartuxo. Os muitos séculos, já incontáveis, fizeram com que eles não precisassem mais conversar em voz alta, apenas pequenos acenos com o olhar, discretíssimos a qualquer estranho, eram suficientes para que eles entendessem o que precisava ser feito. 

Mas, o que eles faziam ali? Parece que observavam os homens, desde diferentes ângulos, usando cada um, um objeto diferente, mas pouco interferiam em suas vidas. Uma mulher com feições ferinas observava atentamente pequenas esferas luminosas em cima de um pedestal, como se fitasse ali as pessoas que decidiriam o futuro do homens dali em diante. Um homem com aparência de monge meditava sentada à frente de um pequeno lago onde algumas carpas nadavam e que, conforma a água ondulava com o movimento dela, revelavam imagens, como se pudesse ver o curso total das coisas num único vislumbre. Seriam eles aqueles que simplesmente observam e escrevem a história nas muralhas infindáveis do ser? 

Ao redor daquela fortaleza um grandioso lago se estende indefinidamente, se misturando com a muralha do nevoeiro. Várias flores de lótus flutuam naquelas águas, em diversos tons de roxo e lilás e de vários tamanhos também, algumas pequenas como a cabeça de um alfinete e outras tão grandes quanto uma pessoa. Por alguma razão me ocorreu a ideia de saber quais sabores teriam aquelas flores que, de algum modo, eu sabia que estavam ali desde o início de toda a criação e que provavelmente ainda estarão lá quando tudo do lado de cá do mundo tiver se desfeito em cinzas no Dies Irae. Que bela visão!

Preciso esboçar algumas palavras, ainda que pelo fato recente e de consequências tão graves eu saiba que as coisas vão demorar um pouco a se aquietar no meu coração. Bem, talvez eu devesse apenas registrar a minha primeira impressão. 

Pela primeira vez em muito tempo eu me sinto tranquilo em relação a esse assunto. Enquanto falávamos sobre era como se pudesse sentir as correntes presas aos meus braços, pernas e coração se afrouxando, pouco a pouco. É claro que doeu, e vai continuar doendo, mas é como aquela dor de ter sido aprisionado por tanto tempo que ao cair das correntes se tornou ainda mais evidente o que estava escondido sob grossa e pesada camada de aço. 

Me senti leve, e deixei as lágrimas rolarem. Muitos sentimentos ao mesmo tempo. 

Ansiedade, 

medo, 

raiva, 

desejo,

tristeza profunda,

desespero e...

amor

amor?

Não pensei muito no peso das últimas palavras, em que a morte lhe parecia mais agradável que minha companhia como homem, isso foi talvez a coisa mais brutal e cruel que já ouvi, mas me concentrei em apenas pensar que agora posso caminhar livre. 

Mas para onde vou?

Mesmo que não tenha um caminho a percorrer, mesmo que não tenha um sonho a perseguir, eu tenho um comprometimento com meus estudos, com a minha busca pela verdade, que me permite que não fique completamente desamparado. 

É noite de domingo, e estou completamente sozinho, mas não sinto o peso dessa solidão, senão que posso aproveitar o som da Sinfonia Trágica de Mahler e aproveitar a brisa gelada que vem do mar. Se fechar os olhos e me deixar levar pela música ou pelo álcool na taça ao meu lado talvez eu possa voar nessa brisa, sem rumo como ela, sem o peso da dúvida que antes esmagava meu peito e me fazia arfar de pavor todas as noites. 

Como disse, o lugar onde aquelas correntes apertaram durante tanto tempo dói, sinto o sangue das feridas abertas, mas sem a lâmina que as fere talvez aos poucos agora elas possam cicatrizar numa pele mais forte, numa armadura que possa me defender daqui para frente. Pensei em não pensar em mais nada e tomar todos os remédios que tenho ao meu alcance. Pensei em caminhar e ir ver o trapiche e sentir a brisa do mar, pensei em pedir pizza.

Morri várias vezes durante os últimos tempos, e não posso dizer com certeza que estou vivo agora, mas alguma coisa eu sinto nesse momento. 

Hoje morri mais vez. 

O primeiro movimento, magistral, da sinfonia, está para acabar, estou ansioso para ouvir o último, que ainda é meu favorito. 

Renascimento?

A única coisa que sinto com certeza, e digo ainda sóbrio, é que agora não tenho mais dúvidas de que o amor, ou o amontoado de coisas que chamamos por esse nome, não existe. É uma grande mentira, ainda mais dizer que o amor tudo supera. Chamamos de amor certas conveniências, necessidades, desejos, medos, carências, e tantas outras coisas, numa espécie de síntese confusa.

A sensação de leveza, a liberdade, essa sim é real porque sinto que nada mais me prende a essa vida. Sinto espuma e sangue e cântico nos lábios, como diz o poeta. E em meu coração há rompantes entremeados de adágios. Estou de luto, talvez por mim mesmo, e por isso me sinto livre. A morte já não mata mais, perdeu sua lança fatal. Um senhor de aparência atemporal, usando um hábito cinza claro, depõe uma túnica branca à porta de uma grande sala donde emana uma energia curativa. Alguém ali dentro, um grande guerreiro de algum tempo se recupera de sua batalha. Logo estará ele livre da câmara curativa e seu corpo será forte mais uma vez. 

Finalmente.

As folhas do jardim na casa vizinha balançam com o vento gelado, tomo mais um gole de espumante, talvez eu seque essa garrafa essa noite e talvez eu volte a atravessar o nevoeiro pela manhã e experimente uma daquelas flores de lótus. 

"Tenho vivido a vida
Sem saber se ainda
Carrego uma alma.
Há tempos, 
Nenhuma paixão
Pare enternecer 
Meu coração petrificado.
Eu me tornei
Confortavelmente desiludido."

(Sávio Oliveira Lopes)

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