sábado, 22 de junho de 2024

O Monstro Condenado

Os dias têm passado de um modo meio etéreo, isto é, eu estou consciente de tudo, eu preto atenção a todos, eu consigo responder, interagir, e tudo mais, mas ainda assim tudo se passa diante de meus olhos meio como um filme em câmera lenta. Mas também não é bem isso, não é como se eu demorasse a entender, é simplesmente como se não importasse mais, como se nada mais importasse. É meio como ver meu próprio reflexo distorcido no metal, sei que aquela figura corresponde de algum modo a mim, mas o sei porque estou ali e não porque algo nela realmente se assemelhe comigo. É estranho, é como se não conseguisse distinguir com clareza os contornos, e tudo vai se tornando assim cada vez mais vago, vazio...

Tive contato com bastante gente hoje, e estou com um pouco de ressaca por isso, querendo silêncio e quietude. Amanhã infelizmente não poderei ter isso, tenho missas e reuniões, mas não tenho a quem possa pedir para me salvar, apenas o silêncio que me faz pensar que fui abandonado. Talvez eu seja uma criatura horrenda até mesmo para os deuses, todos que, em sua gradeza, olham para mim como um ser tão patético que não merece atenção. Não sou obra de alguma vileza ou covardia, não, como se alguém tivesse pensado em mim como forma de punição, não, nem mesmo isso. Não sou como aquelas aberrações de Scila ou Caribdes, criadas a imagem do caos e da destruição, com o propósito de serem sinal de medo e dor aos homens. Não. Sou apenas uma falha, um erro, algo que ninguém quer se aproximar, alguém para quem todos viraram a face.

Também eu viro minha face ao me ver no espelho. Tal criatura nem sequer deveria existir. Mas será que penso isso realmente ou será de novo um reflexo daquele meu desejo profundo de não ser?

Vim pensando em como sou um péssimo cristão. Não no sentido de viver hipocrisia moral, no sentido kantiano e tosco do termo, mas no sentido de que tenho grandes dificuldades em aceitar a ideia da salvação, de um Deus que deseja ficar próximo de nós. Na cosmologia cristã eu estou do lado da condenação, e se fosse hoje para o inferno consideraria completamente justo, afinal eu sou horrível. A condenação é justa e necessária. Mas sei que não iria sozinho. A única coisa que explica então é que isso não tem explicação, a salvação é uma vontade gratuita do Pai, que nos ama porque quer, não porque merecemos. 

Felizmente para os homens eu não sou Deus, pois se fosse, condenaria a todos.

"Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa." (Clarice Lispector)

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