sexta-feira, 14 de outubro de 2016

A morte como transitoriedade Pt. 1


Eis que a mente voa livre pelos mundos que cria e que nessa liberdade ela se encontra verdadeiramente feliz. Tão feliz ou mais do que seria possível ser no mundo real. Aqui ela encontra o que sempre buscou e procurou nos recessos de sua alma durante toda sua vida: a liberdade de amar e ser amada...

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Numa sala vazia então algumas contas de um colar caem no chão, espalhando-se e fazendo um delicado som de vidro sendo quebrado, e aquele som ecoa por toda a sala até silenciar-se... Após esse som, um jovem ajoelha-se angustiado sobre si mesmo. Aquele colar era a última das lembranças que lhe restavam do grande amor que vivera e agora, sem nada além de peças espalhadas, suas memórias não tinham mais uma alcova para descansar. Uma névoa delicada paira ao seu redor então e finalmente quando a cena se abre podemos ver o cenário em que ele se encontra. 

Um jovem de corpo frágil e roupas amassadas ajoelhado sobre si mesmo numa sala onde tudo é branco. Nela vemos apenas um divã, também branco, e uma pequena mesa, com uma garrafa de vinho ao lado de uma taça cheia. Lá fora a chuva começa a cair. Primeiro lentamente, pequenas gotas acariciando o solo e logo fica mais forte, com violentas lufadas de vento agrendido as janelas até que essas se abram, inundando o ambiente antes silencioso com o som feroz da tempestade. 

Mas tudo parece ainda na mais perfeita ordem, como se o mundo apenas refletisse o interior daquele jovem. Ele não consegue chorar, sua lágrimas secaram, mas seu coração se encontra engustiado, e aquela tempestade é semelhante aos ventos e raios que agora caem em seu coração. Ele tenta dizer algo, mas sua voz não sai. Não consegue mais ouvir a si mesmo, como se seu corpo e mente tivessem sido separados e de repente tudo começa a girar. Talvez seja o efeito do vinho dialogando com os remédios que tomara. Ou talvez seja apenas seu sofrimento. 

Ele aos poucos consegue se erguer. Fica de pé, mas não caminha em direção a janela para impedir que a chuva continue a inundar a sala, não, ele apenas fica de pé, olhando o lugar onde antes ficava um quadro cuja cena ele já não se recorda mais. Ali agora só há um espaço vazio e uma pequena marca onde anteriormente ele arremessara outra garrafa de vinho. Recuperando os sentidos aos poucos ele ergue o punho cerrado em direção ao seu coração, tentando recordar-se de algo importante, quando de repente um som estrondoso de trovão o faz despertar-se completamente de seu torpor, e ele sai correndo em desespero por entre as ruas inundadas em direção a lugar nenhum.

Chapinhado pela água que o atinge violentamente ele logo fica encharcado, e as gotas batem com força sobre seu rosto, dando a impressão de que ele se tornou capaz de chorar novamente. Na verdade é a natureza que chora em seu lugar. Ele logo se distancia da cidade, e a chuva começa a diminuir, restando tempestade apenas em seu coração e reunindo todas as suas forças ele finalmente consegue recobrar a voz e gritar a plenos pulmões o nome de seu amado. Prostrado mais uma vez ao chão, literalmente jogado na lama, ele sente o ar frio bater contra seu corpo, levando para longe dali as cinzas do seu amor. Abandonando então sua casa, sua vida e sua história, ele se decidira pela inexistência, optara por deixar de existir, mas antes, precisava livar-se dos restos dos sentimentos que ainda haviam em seu ardente coração. 

A chuva já se foi, e o sol se abria lentamente, dando aquele jovem o primeiro sinal de calor que ele sentira em dias, mas incapaz de dissipar a névoa tenebrosa que ainda o envolvia. De braços abertos então, olhando para aquele céu ainda nublado que mostrava os primeiros vestígios de luz ele se entregou completamente ao nada. Expandiu sua mente no objetivo de abarcar a totalidade da existência, e retornando ao seio primitivo de onde todos os homens sairam, ele dá início a sua passagem dessa vida para a eternidade. Mas essa não é uma passagem fácil, pelo contrário, é dolorosa, e uma vez iniciada, ele percorrerá novamente por todo o caminho de angustia que o levou até ali. Angústia essa que lhe possibilitou fazer essa passagem.

Já no estado de transitoriedade entre o mundo e a liberdade da eternidade, suas memórias retornam. Mas não como costumava lembrar-se das coisas. Na verdade já havia se esquecido de tudo aquilo. E agora não mais via todas aquelas coisas como quem vive novamente. Ele apenas observava tudo. 

Recordou-se do dia em que o conheceu. num baile, onde dançando com várias e várias damas daquela corte, apenas um jovem rapaz que estava ali servindo os convidados lhe chamou a atenção. A semelhança entre ambos era enorme, e se quisessem, poderiam facilmente passar-se pela mesma pessoa. E ele observou aquele rapaz durante toda a noite, onde quer que ele fosse, seus olhos o seguiam, como uma criança que persegue com o olhar um doce muito desejado que seus pais lhe negam. E ele ficava admirando a beleza daquele homem, que ele nunca vira antes, mesmo frequentando os eventos da alta sociedade com certa assiduidade. 

Tinha um corpo forte, provavelmente a única diferença entre eles, cabelos negros e brilhantes que caiam delicadamente por sobre os ombros, combinando perfeitamente com olhos igualmente negros, que se assemelhavam a escuridão do universo e eram igualmente vastos. Seu sorriso era encantador, tímido, e misterioso, porém sincero. E ficaram ali, olhando um ao outro por toda a noite, até que, já pouco antes do amanhecer quando a maioria dos convidados dispersara-se e eles finalmente puderam se encontrar nos jardins daquela casa, começaram a compreender que aquela semelhança e o encontro dos dois era provavelmente mais do que mero acaso, e de fato compreenderam isso quando, ao nascer do sol, seus lábios se tocaram pela primeira vez, iluminando um ao outro e o enchendo de calor como o astro rei fazia com o mundo.

Fora transportado logo para outra visão. Meses mais tarde, quando já estavam juntos definitivamente. A paixão que os movera fora arrebatadora. Em poucas semanas passaram a se encontrar todas as noites para se entregarem aos prazeres de possuirem um ao outro. E não demorou muito a irem moram na mesma casa. 

Mas aquilo não deixaria de ser um escândalo. Dois homens juntos já era inconcebível, e dois de familias tão diferentes era algo ainda pior. Um deles era rico, no entanto único herdeiro de sua já falecida família, vivia sozinho desde então, desfrutando de uma vida de prazeres com suas vastas riquezas. O outro era de família pobre, e conseguira trabalhar naquele baile para ajudar nas despesas dos seus pais que precisavam alimentar uma prole numerosa. Pais esses que o expulsaram de casa assim que tomaram conhecimento do que ele fazia com o outro rapaz rico que tanto se parecia com seu filho. 

Infelizmente a elegria dos dois duraria pouco. Aquele que tivera uma vida mais difícil caíra atormentado por uma terrível doença. E como se tornara conhecido na cidade por cometer atos tão torpes com outro homem, nem mesmo todo o dinheiro de seu amado foi capaz de pagar alguém que pudesse cuidar dele. E nosso jovem teve de assitir ao seu amado partir desse mundo lenta e dolorosamente, definhando dia após dia, até parar de respirar numa noite chuvosa, após dizer com muito esforço que o amava e o abandonando então, ao que seriam dez longos anos de uma loucura motivada pela tristeza e pelo ódio que se mesclaram com aquela paixão arrebatadora que durara apenas poucos meses. 

A última de suas visões seria então esta. Assistiria continuamente o definhar e a morte de seu amado até que não sentisse mais nada. Seu amor seria então purificado, e só então ele estaria pronto para deixar de existir naquela forma. E assim foi feito. Por um tempo que ele não soube ser capaz de precisar, ele assistiu a seu amado morrer, vez após vez, até que não restasse nele mais tristeza, nem rancor, apenas o seu amor, e assim sua mente começava a expandir-se completamente.

Poucas são as almas que conseguem alcançar tal estado em vida, e no entanto o final dessa passagem significa justamente a morte. Mas a morte era o aquilo que ele mais desejara nos últimos dez anos, pois assim poderia reencontrar-se com seu amor. Ele sentiu seu corpo perder a sensiblidade, e passou a sentir as poças de lama e as arvores que o cercavam como sendo partes de si. Sua casa perdera seu cheiro, e nela só restou dele aquela garrafa de vinho, para provar ao mundo que ele um dia existira ali. No mais, seu corpo desapareceu, e sua mente passou a cobrir o todo e quando finalmente se completou o ciclo, ele o encontrou.

Não possuiam mais corpo. Não podiam mais tocar um ao outro como faziam antes. No entanto estavam mais próximos agora do que jamais estiveram. Eram agora um só. Não mais duas existências distintas, apenas uma, que no entanto não existia. Eram apenas amor, e nesse amor é que se moviam, e nesse movimentar, semeavam e protegiam os amantes de todo o mundo que ainda deveriam passar por aquela transformação.

A morte se mostrou apenas como estado de transitoriedade. Ceifou a alma do corpo e a levou para ser purificada dos sentimentos ruins que alimetara durante a vida. Após o purgatório ele finalmente fora levado para o lado de seu amado, onde seria para sempre apenas um com ele.

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