segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Psicose

Uma onde avança sobre a mente e o corpo de um pobre homem. 

Sob a forma de milhares de assassinos sanguináreos que marcham sem parar em direção a sua pequena residência o destino promove mais uma de suas investidas contra o frágil coração dos apaixonados.

Ao olha pela janela e contemplar o brilho do sol refulgir sombriamente sobre as folhas secas do outono ele sente o temor se aproximar com o bater dos tambores que anunciam sua própria morte. O mundo ao seu redor descansa tranquilamente, pois ninguém mais é capaz de enxergar a morte que se aproxima lenta mas certeira rumo do seu alvo. Pode-se ouvir até mesmo as risadas gélidas e metálicas do demônio que se diverte com o horror da morte dos homens. 

A aproximação do inimigo é iminente. Mas o mundo não se move, as pessoas não se preocupam. Não percebem elas que todos morrerão se ficarem alí? Ele tenta demovê-los de suas posições, tirar a todos daquele lugar que em breve se encontrá em ruínas, mas ninguém se mexee, sequer são capazes de ouví-lo gritar. E enquanto isso os homens já cercam a casa e começam a acender as tochas e achotes, prontos a destruir e a queimar tudo. Como todos se encontram paralisados, ele decide fugir sozinho e então sai em desespero por sua própria vida, enquanto ao observar sua casa que ficou para trás, ele a vê em chamas ruindo completamente. 

Em seu coração, a inquietação, o medo, o desespero e o pânico lhe tomam de conta das forças e ele cai numa poça de lama, sujando seu belo rosto deformado pelo medo. No fundo de sua alma continua a ouvir aquela risada demoníaca que lhe diz que é impossível escapar. Mesmo assim ele deseja continuar a correr e a lutar por sua vida. precisa ainda resgatar seu amor, que vive na cidade próxima, e que logo será arrasada como fora sua própria casa. Com um doce sentimento ele se lembra então da doce face de seu amado... Seu rosto corado e seus cabelos cor de mel numa combinação estonteante de doçura e beleza. E animado por essa idílica visão que brota de seu coração, ele se põe novamente em marcha a fim de salvar aquilo que mais lhe importa em sua vida.

Sozinho ele percorre a longa estrada que o conduz à cidade, sempre olhando para trás e vislumbrando as tochas dos algozes iluminando a fria noite como os olhos de um fantasma demoníaco. E aquela risada que continua a encher sua alma do mais profundo desespero. O Destino, divertindo-se, caminha lentamente, avançando como uma sombra pela noite em direção ao jovem que luta por algo que não existe mais. Essa será para ele uma morte divertida, daquelas preparadas com requintes de crueldade que conduzirão a pobre alma escolhida para um triste fim.

Antes de chegar a entrada da cidade, nosso jovem se depara com uma cena que quase o leva a loucura: embora o grupo de assassinos da morte lhe siga em seu encalço, parece que os habitantes já foram massacrados todos impiedosamente. A sua frente se ergue uma grotesca pilha de corpos ensaguentados e disformes, rodeada por uma incontável quantidade de pessoas mortas e jogadas a esmo pelo campo. Carroças destroçadas indicam que aquelas pessoas fugiam de algo quando foram brutalmente assassinadas. 

Cabeças cortadas, membros separados dos corpos e sangue, uma verdadeiro mar de sangue e aquele cheiro de morte. 

De repente, um estalo: seu amado! 

Se os moradores da cidade fugiam de algo, seu amado pode estar entre aqueles milhares de corpos destroçados no campo. E ele então começa a uma insana procura pelo corpo do homem que ele ama. Conforme ele avança em sua busca, seu coração se acelera cada vez mais e sua respiração também e logo ele se vê correndo desesperadamente por entre corpos sabendo que sua busca é inútil, e que se seu amado se foi, ele nunca conseguirá encontrá-lo ali. 

Talvez houvesse ainda algum sobrevivente daquele massacre. Talvez seu amado estivesse entre eles, e com uma mescla de esperança e medo, ele parte mais uma vez em direção a cidade, aos tropeços e soluços, com os olhos enevoados pelas lágrimas e o cheiro sufocante de sangue que ronda o ar. 

Andando por entre as ruas vazias de uma cidade deserta, ele encontra mais caos e destruição. Corpos espalhados por toda a parte num lugar outrora calmo e alegre que agora se encontra mergulhado em plena destruição. 

Seu amor não está ali. 

Ele se foi.

Pode estar por dentre os corpos que deixou para trás ou em qualquer outro lugar, mas não há sobreviventes. 

Todos morreram e ele se encontra só.

Curvado sob a dor de imaginar seu amado sem vida ele se entrega ao desespeto completo e suas lágrimas escorrem por seu rosto sujo...

Sozinho então ele ouve ao longe o som de risadas abafadas por ruidos de choro e ranger de dentes. 

No fim da cidade, foi armado um verdadeiro show de horrores. Aos homens sobreviventes foi dado um destino ainda mais cruel que a morte pela espada: a tortura. Os algozes que de alguma forma ali chegaram separavam os membros dos pobres coitados e dilaceravam seus corpos num divertimento macabro regado a vinho e sangue que enchiam o ar de uma névoa vermelha inebriante e diabólica. 

Seus olhos percorreram a parca fila dos pobres sobreviventes, muitos dos quais se desesperavam ao verem suas esposas e crianças serem mortas são friamente bem diante deles. Dentre eles, um homem se destacou aos seus olhos: a pele morena e os cabelos brilhantes agora sujos de sangue e poeira, mas no olhar, um brilho ainda desafiador de um homem que não teme a morte. Nosso jovem logo que o viu começou a correr, ou melhor, tentou correr, em sua direção. Mas viu-se paralisado pela força do Destino que finalmente percebera que ele ali chegara. 

Dera ao nosso pequeno então um lugar de honra para assistir aquela apresentação da maldade. E acorrentando por grossos elos negros que lhe queimavam a pele ele fora obrigado a assistir as torturas uma a uma, cada vez em maior desespero ao ver que aproximava a hora de seu amado. 

O instrumento de tortura escolhido para ele fora o mesmo dos dois últimos cadáveres. Uma mesa onde era amarrado o pobre condenado e que, ao girar de uma alavanca, separava lentamente pernas e braços de um agonizante homem. Naquele momento ele não se aguentou de pânico e enquanto seu amado era atado a mesa ele gritava descontroladamente, para deleite do Destino. 

Os olhos do seu amado, que antes brilhavam desafiadoramente agora tremiam ante a face iminente da morte. E enquanto as alavancas eram giradas, e seu corpo começou-se a desfazer-se em fibras ensaguentadas de dor e quando seus gritos perfuraram o ar e o coração do nosso jovem, suas correntes se romperam, permitindo que ele se atirasse no poço de sangue onde jaziam os restos do homem que ele amava bem em tempo de observar seus olhos perderem o brilho e a vida. 

Tremendo, soluçando e cuspindo sangue por tanto gritar, ele se virou para o Destino. Com os olhos em chamas, suas lágrimas eram agora de sangue e ele desejava ao Destino a morte que dera ao seu amado. 

Ele ficou de pé em frente aquele homem imponente. Um rapaz magro, sujo de sangue e lama, tremedo de ódio em frente a um homem alto, belo e que trajava uma resplandecente armadura dourada, que brilhava como ouro em meio aquele mar de sangue e que o olhava com ar de desdém. 

Mas contra uma força do universo ele nada podia fazer e o destino o condenou, por olhá-lo daquela forma desrespeitosa, a um fim cruel.

De uma cama dura e fria nosso jovem agora observa, dia após dia, as cenas atrozes da morte de seu amado em seus sonhos. Paralisado para sempre, condenado a assistir aquela cena por toda a eternidade, conduzido pelas próprias mãos do Destino à loucura completa. 

O Sol agora brilha forte.

 No mundo, nenhuma mancha de sangue ou morte. 

Seu amado, leva sua vida normalmente na cidade próxima, sem sequer lembrar-se do pequeno jovem que andava por aquela cidade, mas que agora se encontrava acamado devido a um acesso de loucura que o fizera descrever cenas de atrocidades para com pessoas que ainda estavam vivas e bem. Se casara com uma jovem moça que trabalhava ali perto e já tinham dois pequenos filhos. 

Na verdade, o pequeno não suportara ver ser amado ao lado de outra e enlouquecera, graças aos dotes sadomasoquistas do Destino. Naquela cama fria ele via seu fim se aproximar. Depois de muitos anos de loucura contida, sendo obrigado a observar aquelas cenas de horrores continuamente, já sem nenhum vislumbre de esperança que não fosse a morte, o Destino lhe restituira os movimentos do corpo, e sentou-se abaixo da janela de seu quarto, no último andar de sua casa, para ali esperar que o jovem viesse para seus braços quando esse, num acesso de fúria, lançou-se pela janela, dando um fim a sua vida, em direção aos braços do Destino que o acolhia alegremente.

Antes de morrer, ouviu pela última vez, a risada gélida do demônio, enquanto contemplava o olhar doce e terno do seu amado.

E tudo retorna ao nada. O mundo continua como se nada tivesse acontecido. Todos seguem com suas vidas como se ele nunca tivesse existido. E tudo retorna ao nada. 

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