segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Olhares na neve

Um pequeno garoto caminhava distraído por uma rua apinhada de gente numa grande cidade da Europa. Embora o frio estivesse em seu auge e a neve caísse desde muito tempo, cobrindo o chão e os telhados casas com uma grossa camada de pasta branca que mais parecia marshmalow, ele chegara ali havia pouco tempo e como era a primeira vez que via neve de verdade, se sentia na obrigação de observá-la cair tanto quanto pudesse. 

E aquele era para ele um espetáculo deslumbrante para os seus olhos infantis e que desconheciam as belezas e maravilhas do mundo. Olhava como se formavam as estalactites brilhantes nas varandas das casas por onde passava. Embora fizesse um frio congelante, isso não diminuía o frenesi da cidade que eufórica se preparava para os festejos do Natal. De toda parte vinham pessoas carregando pacotes e mais pacotes, sacolas de tamanhos descomunais, embalagens de bolos, crianças a chorar pedindo doces e brinquedos, e pais nervosos por não saberem se chegariam em casa com tempo hábil para terminar os preparativos para a ceia. No entanto, ninguém ali parecia se importar com a neve que caia. 

Ele olhou para o céu, mesmo depois de caminhar por várias horas, ainda se encantava com as pontinhas de cotonete que caiam do céu e molhavam sua face. Andara tanto que já estava a transpirar e quando a neve entrava em contato com sua pele quente, logo derretia e descia num filete prateado por seu pescoço. Mas ninguém ali parecia se importar com a neve que caia.

Os flocos de neves, únicos e especiais, como aprendera nos livros antes de viajar, simbolizavam o amor puro e único, mas também podiam simbolizar a frieza no coração dos homens. 

Ele parou numa das ruas para observar uma marcha militar. Um enorme destacamento de soldados passava por aquela região, preparando-se para um exercício em conjunto com um destacamento vizinho.  Aqueles eram os soldados responsáveis pela proteção daquelas terras montanhosas e frias, e muitos diziam que eram invencíveis em sua missão. 

Eram liderados por uma general, uma mulher alta, de cabelos loiros, que chamavam muita atenção naquelas terras, e olhos profundamente azuis e frios, mais frios que o próprio gelo que cobria o seu quartel. A aparência daquela mulher, quando passou pelo jovem menino, deu a ele a impressão de que ela sozinha era mais poderosa do que todo o destacamento de sua divisão. Tinha uma postura rígida, soberana, como se qualquer inimigo fosse cair aos seus pés numa batalha, mas não parecia ser orgulhosa, logo essa impressão não era produto de sua postura, mas sim de um fato. Realmente qualquer inimigo cairia aos seus pés caso tentasse algo. Enquanto passava, seus olhos se cruzaram por um segundo, e ele sentiu-se congelar por completo, pela primeira vez desde que chegara ali, coisa que nem mesmo o ar gelado conseguira fazer até então. E a marcha continuou, solene e silenciosa ao mesmo tempo, ouvia-se apenas os passos rápidos dos soldados abrindo na neve um caminho limpo no chão de pedra.

O pequeno garoto, agora estranhamente assustado pela visão imponente da general, continuou a observar os soldados que passavam a sua frente. Eram, em sua maioria, grandes e fortes como ursos, e mesmo com a enorme farda de inverno, que incluía grossos casacos negros, seus músculos ainda eram visíveis. Mas nenhum deles possuíam a mesma altivez e autoridade que a jovem general de olhos frios. 

Já entre os últimos soldados, um deles o chamou a atenção, e ele sentiu-se corar por isso. Todos passavam com o olhar sério, olhando apenas para a frente, sem desviarem-se um milímetro sequer. Mas um dos homens era diferente, era alto, mas não tão forte quanto os outros, e passou olhando aquele pequeno rapaz que, da rua, observava seu destacamento. Embora estivesse fardado exatamente como todos os outros, destacava-se na multidão. Tinha cabelos e olhos pretos, brilhantes como estrelas numa noite escura. A pele clara podia muito bem ser ainda mais branca do que a própria neve, mas ficou vermelha ao cruzar o olhar com o jovem. Ele também era muito novo, não devia ser maior do 4 ou 5 anos a diferença de idade entre eles. E por um instante, o soldado virou o rosto para observar melhor o rapaz, com uma feição curiosa, mas logo tornou a olhar para frente, o rosto vermelho como se ele estivesse prestes a explodir. Mesmo que isso tenha acontecido em questão de poucos segundos, essa breve troca de olhares deixou no coração do pequeno garoto uma marca profunda, e ele não esqueceria daquele dia nunca mais.

E não esqueceu. 

Alguns anos se passaram. Uma grande guerra irrompeu na cidade onde o exército nacional faria seus treinos em conjunto e muitos soldados morreram num confronto contra o país vizinho.

O garoto crescera e amadurecera muito nos últimos tempos. As dificuldades que sua família enfrentava fizeram com que ele logo despertasse um senso de responsabilidade diferente dos rapazes de sua idade. O grande esforço físico que ele fazia diariamente no emprego clandestino nas usinas de carvão do exército o fizeram desenvolver o corpo também mais do que a maioria dos garotos, ele agora era facilmente confundido com um homem feito, um pai de família. 

Muito embora já estivesse chegando a idade de casar-se, ele ainda não havia demonstrado interessesnisso. Algumas jovens damas se interessaram por sua beleza ímpar e, mesmo sendo todas elas de uma classe social bem mais elevada, estavam dispostas a recebê-lo como marido, desde que ele as possuísse naquele corpo que, segundo diziam, havia sido forjado pelo próprio Hefesto sob a inspiração da imagem de Apolo. 

Ele tinha o corpo moreno, quase dourado, e os cabelos cor de caramelo, levemente ondulado que caiam numa franja sobre a testa, muitas vezes grudada com o suor que o trabalho lhe provocava. Os olhos, eram de um profundo azul, mas diferentes dos da general, eram quentes!

Desde aquele dia, quando vira o exército marchar, ele perdera completamente o interesse nas mulheres. Embora na época fosse criança, já tinha consigo aquele interesse natural dos garotos pelo sexo oposto, mas isso se apagou. Conforme os anos passavam, ele se dava conta de que na verdade havia, naquele pequeno instante, se apaixonado pelo jovem soldado que vira passar a sua frente. 

Daquele momento em diante, a visão daquele soldado passou a fazer parte do seu cotiano, e não houve um dia sequer em que não pensasse nele. Será que estaria ainda vivo lutando naquela sangrenta batalha? Será que quando retornasse, teriam a oportunidade de conhecer? Afinal o quartel da fronteira ficava ainda longe dali. Será que ela tinha mulher e filhos naquela cidade, mesmo sendo tão jovem?

Notícias corriam pela cidade que a guerra havia acabado. Os soldados que protegiam a fronteira logo retornariam. O país não só saíra vitorioso como também anexara os territórios de uma pequena nação que ousou se rebelar contra a autoridade do exército. Logo os heróis nacionais retornariam para sua cidade e para suas famílias. Todos preparavam então as boas vindas para aqueles que, segundo as palavras do marechal que comandava aquele país: "Tinham tido importante participação na consolidação da autoridade militar daquela nação, sob as ordens da competente general, que agora era um forte nome a sucedê-lo no comando supremo do país."

A cidade inteira parou quando os sinos da catedral começaram a tocar fora dos horários de costume. Significava que o exército voltara! Para aquele rapaz, significava que, mesmo depois de tantos anos, teria a chance de rever aquele que não saíra de sua mente desde então; Ele sonhava com aquele rapaz todas as noites, e nem sempre seus sonhos eram felizes, pois muitas vezes ele acabar segurando seu amado numa terra enlameada, rodeado de cadáveres ao som de tiros de canhão e fuzis.

Todos se dirigiam para as ruas onde os heróis passariam. Mulheres saiam de suas casas ainda com os aventais amarrados a cintura. Os homens gritavam palavras de agradecimento e agitavam bandeiras enquanto brindavam com grandes canecas de cerveja. As crianças corriam em volta dos cavalos, também agradecendo pela proteção que lhes dera.

A frente do grande cortejo militar (que não parecia ter diminuído muito em número) estava a imponente general. Tão soberana quanto antes, parecia até mesmo que não envelhecera um dia sequer desde sua partida, os olhos ainda mais frios, provavelmente fruto das inúmeras mortes que suas ordens causaram na nação vizinha que agora se encontrava em ruínas.

Nosso jovem de corpo dourado corria os olhos por cada um que passava, na busca daquele olhar que cruzara com o seu anos atrás. Logo atrás da general e de sua guarda pessoal, vinham os soldados que haviam se machucado em combate. Alguns tinham perdido membros, mas a maioria estava em condições razoáveis. Outros eram carregados pelos colegas enquanto, mesmo com dor, buscavam acenar para os moradores. A pose séria foi reservada apenas para os soldados que não tinham nenhum tipo de ferimento, e que seguiam marchando logo atrás da ala médica. 

O último destacamento quase começara a passar quando ele o viu: carregando nos ombros um colega que estava com a perna machucada e por isso andava lentamente, atrás de todos. Ele não pensou duas vezes antes de invadir o cortejo e se enfiar por debaixo do braço do soldado ferido, que seu amado ajudava a carregar com dificuldade. Muitos soldados viram, mas como aquela era uma ocasião especial e todos estavam cansados demais para carregar aquele tolo que exigira ir a pé sem mal conseguir andar, deixaram que o civil entrasse em seu meio.

Ao olhar para o seu amado, cruzando com ele o olhar da mesma forma que anos atrás, ele viu naquele sorriso de agradecimento uma grande oportunidade.

Se apresentou o soldado, que realmente não era mais velho do que ele muita coisa, e que agora voltava para casa. Não tinha mulher ou filhos e nem família por perto. Havia sido criado pessoalmente pela própria general, como pagamento de uma dívida de sangue, com seus pais, médicos, que haviam salvo sua vida numa guerra anterior, mas que morreram nessa mesma guerra.

Depois daquele dia, passaram a se ver como bons amigos, saindo juntos muitas e muitas vezes desde então. Como em tempos de guerra muitos jovens eram convocados para o exército, a fim de suprir as baixas, o destacamento agora contava com um grande número de soldados rasos para realizar as tarefas que antes eram dos veteranos, dando a esses oportunidades mais numerosas de folgas.

Cada vez que se viam, seja na rua ou num encontro no bar para beber e contar histórias da guerra, ambos ficavam vermelhos, e por vezes paravam de conversar para ficarem apenas ali, observando um ao outro nos olhos, esperando que um compreendesse o que através do olhar o outro gritava.

Estavam apaixonados. Perceberam isso no dia em que se viram novamente, a carregar o soldado moribundo. E aquele sentimento era tão poderoso dentro deles que não demorou muito até que explodisse completamente, como as flores que desabrocham na primavera, mesmo depois do rígido inverno.

Numa noite de bebidas e cigarros, os dois foram juntos para casa, onde ali se entregaram completamente. O calor que emanava de seus corpos seria capaz de derreter a neve de toda a região, mas conteve-se aquele pequeno cômodo, onde, por uma noite, duas almas se tornavam apenas uma.

Na manhã seguinte, ao acordar, depararam-se com a visão idílica de uma noite inesquecível. Mas que não terminaria por ali.

Muitos anos se passaram desde que o jovem soldado saíra para a guerra, e ele revelara ao seu então companheiro que, mesmo no campo de batalha, em meio a tiros e canhões, ele também passava seus dias lutando apenas com o objetivo de rever aquele rapaz que vira no dia de sua partida. Não acreditava que voltaria com vida da guerra, afinal, os soldados da infantaria dificilmente sobreviviam aos confrontos daquele país. 

Mas sobreviveu. 

Sobreviveu e voltou, apenas para encontrar nos braços daquele rapaz o calor que era capaz de derreter a neve de seu coração. E ainda hoje estão juntos, a derreter a neve presente no coração um do outro, se aquecendo no calor de seus corpos e de seus corações. 

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