quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Sobre o intelectual solitário

Ao ver alguém escrever como Cervantes o Dom Quixote, acompanhando as novelas exemplares de Cervantes. Ao descobrir em romances contemporâneos Milton Hatoum, O Copo de Cólera. Ao descobri Lavoura Arcaica, que me provocou também um impacto extraordinário. Ao ver esse tipo de texto, eu reconheci que haviam mentes muito privilegiadas, sobre as quais eu poderia discorrer, pensar, aprofundar, elaborar questões para os meus alunos. Mas eu não faria a mesma coisa, não faria do mesmo jeito.

Então tive de achar um nicho na humanidade, que é ser professor. Eu considero que ser professor, no meu caso, não é só um título justo, mas é um título tecnicamente simpático porque cabe ao grande intelectual, a uma pessoa do porte de Kant ou de Clarice, criar ideias. E cabe a um professor, ensiná-las! É uma posição bonita, que vai criar algo no aluno, mas cria ideias. Criar ideias é próprio da intelectualidade. E por intelectual estou entendendo essas pessoas que sendo ou não professores, sendo ou não escritores, um dia olham pro espaço e tem aquela intuição que Giotto di Bondone teve ao reinventar a perspectiva na pintura. Um dia olham pro espaço e tem aquela intuição que Picasso teve ao pintar Les Demoiselles d'Avignon e criar e inventar o cubismo como linguagem. Que olham pro espaço e pra umas gravuras japonesas e tem aquela explosão de pinturas que entre 1889 e 1890 Van Gogh teve. 

Para me consolar no meu estado intermediário de inteligência eu pensei: Van Gogh se matou! Clarice Lispector era uma pessoa atormentadíssima. Segundo a biografia recente do Benjamin Moser era uma pessoa atormentada porque dotada dessa capacidade de visão ela tinha uma dificuldade extrema de convívio com as pessoas. Pois pra conviver bem com as pessoas precisa estar mais ou menos no mesmo plano civilizacional que elas. Por isso que as pessoas simples são muito sociáveis. Quanto mais simples, mais sociável. E se ficam muito felizes com experiências muito singelas de conversa. 

E aí não um conselho, mas uma advertência: a medida que vocês forem lendo mais e mais, à medida que vocês não conseguirem mais viajar sem um livro, à medida que vocês forem entrando na descoberta da literatura vocês vão descobrir uma outra coisa. Vocês vão ficando mais exigentes com as pessoas. E aquela conversa "tá quente hoje né?", "será que vai chover?", "nossa, esse calor, é muito cedo pra este calor né?", "o tempo ta maluco", "que jogo ontem!", "e a política né? Tudo uns ladrão". A medida que eu enuncio essas orações absolutas, assindéticas, eu vou entrando numa capacidade de enunciar o mundo como ele é. "Está quente hoje em Porto Alegre." 

Mas a medida que eu leio Coração das Trevas, de Conrad, o polonês que escreveu inglês nessa obra impressionante, eu vou me sentindo um pouco Kurtz no meio da selva. Um europeu perdido numa curva do rio Congo, preocupado em como ensinar as pessoas locais a passarem o seu terno de linho. E isso me remete ao filme inspirado nesse livro, Apocalipse Now, e o Kurtz se transforma em Marlon Brando. E eu penso em Marlon Brando desde O Sindicato dos Ladrões até Apocalipse Now. E a minha cabeça deu dez voltas enquanto alguém me diz "ta quente hoje né? Nossa que calor!"

Isso me torna mais feliz? Provavelmente não! Vocês sabem que intelectuais e mesmo pessoas muito versadas raramente são muito felizes. A universidade não é um local de felicidade intensa. Se alguém não passou pela universidade talvez tenha uma outra sensação, mas felicidade não é própria da universidade! Uma reunião de departamento não é uma reunião de pessoas que flutuam no espaço das ideias e são iluminadas pela luz da razão, e se referem umas às outras através de haikais literários sofisticados. Uma reunião de departamento, em qualquer departamento, é quase sempre idêntica a uma reunião de pessoas não formadas, só variando o vocabulário. 

Leandro Karnal

Transcrição de um trecho da palestra "Ler é viver", feita no Teatro Carlos Urbim na 62ª Feira do Livro de Porto Alegre em 08 de novembro de 2016.

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