quarta-feira, 22 de junho de 2016

A esquizofrenia presente no bem e no mal

Realmente eu tinha muita coisa pra falar hoje, mas comecei a escrever várias vezes e parei por não conseguir organizar as ideias de uma forma satisfatória. As ideias até que estão aqui dentro, burbulhando, mas acabam saindo sem forma, e eu quero começar a evitar aquelas postagem com 300 parágrafos, sem nenhum conectivo, cada um falando de um assunto diferente, que o Lexotan me obriga a escrever vez ou outra. 

Então, claro que eu fui buscar inspiração na minha musa idílica favorita: a música, e a escolhida pra hoje é a grandiosa Sinfonia N° 5 em C# m do Gustav Mahler. O compositor já apareceu por aqui alguns dias trás, e provavelmente vai dar as caras mais algumas vezes, já que, sendo considerado um compositor com uma quantidade razoável de obras funestas, eu tenho buscado me aprofundar um pouco mais nas suas composições.

Escolhi essa peça porque a primeira coisa que li sobre ela foi uma crítica do historiador Deryck Cooke que dizia que se tratava de uma música com caráter esquizofrênico. Já achei fantástico logo de primeira. E como já faz um bom tempo que escutei, resolvi repetir a audição e dessa vez me aprofundar um poquinho reflexão sobre ela. Pretendo também acrescentar é claro, as mil e uma coisas que tenho tentado dizer mas que não consegui através de uma metodologia "do arame" que é tentar escrever sem a inspiração correta onde posso me debruçar. Então, ainda nas palavras de Cooke, a Quinta de Mahler 

"Possui caráter 'esquizofrênico', já que nela, convivem perfeitamente separados o mais trágico e o mais alegre dos mundos. Consta de cinco movimentos, sendo os dois primeiros quase temáticos, explorando o lado trágico da vida. 

O primeiro movimento, uma escura marcha fúnebre, começa com uma fanfarra de trompetes que aparecerá repetidamente, dando-lhe uma atmosfera especial de inquietude e desolação. O segundo, um frenético allegro, muda completamente o espírito do movimento anterior; seu caráter histérico alterna com o de marcha fúnebre, onde ao final da exposição parece triunfar um relativo otimismo, para cair novamente na angústia e na escuridão. 

É no scherzo, do terceiro movimento, que surge com maior clareza o citado caráter esquizofrênico, em absoluta contradição com a atmosfera niilista anterior, saltamos, sem solução de continuidade, à visão mais alegre da vida. São dois modos de ver a existência impossível de reconciliar. Tanto o ländler como a valsa do trio estão, ainda com seu ar de nostalgia, muito longe do desespero inicial da sinfonia. 

O famoso adagietto para cordas e harpas, constituindo o Quarto movimento, é um remanso de paz entre a força do scherzo e do último movimento, estando impregnado de um desejo de distanciar-se das tensões e lutas para refugiar-se da solidão interior. 

O quinto movimento finale, parte de motivos populares, possuindo um caráter exuberante e alegre. Em seu clímax final recupera e funde o caráter angustiante dos primeiros dois movimentos com a alegria dos últimos, combinando assim os elementos tão díspares de escuridão e luz que convivem na Sinfonia."

Eu gostei muito dessa dualidade entre o trágico e o alegre que o crítico apontou, e claro, na minha opinião, também acho que se trata de um viés enlouquecido, quase desesperado do compositor, que acabou saltando pras páginas da partitura. Eu vou explorar então essa insanidade que ela expressa nos seus acordes e movimentos e tentar me inserir em seu contexto de Guerra e Paz, de Luz e Trevas que ela nos traz.

O 1° Movimento é uma Marcha fúnebre, provavelmente o tipo de composição que eu mais admiro, justamente pela profundidade que elas conseguem exprimir em seus acordes macabros. A primeira imagem que me vem a mente então é a de um grande féretro sendo carregado em procissão pelas ruas enlameadas de uma cidade européia do século XVIII, seguido de uma grande massa de pessoas. Já começamos com um herói morto. Será que ouviremos sua história, ou veremos o futuro daqueles que agora viverão sem ele? As pessoas estão profundamente sentidas pela morte desse desconhecido. Percebe-se pelas roupas das mulheres que muitas delas estavam ocupadas em seus afazeres e laragaram tudo pra trás quando viram o movimento nas ruas. 

Repentinamente, a cena da cidade é enevoada por uma fumaça marrom, como que uma leve nuvem de areia que entra nos olhos e impedindo a visão, revela um mundo diferente quando finalmente os olhos são limpos. A medida que a densa nuvem de poeira aumenta, o clima de suspense vai ganhando espaço, até que irrompe num assustador andamento, com altos e baixos e um desespero crescente que vai tomando conta do espaço como a risada do diabo, que se diverte com a morte e o pranto dos pobres e desamparados. A atmosfera desolada deu lugar a um visceral conjunto de acordes que parecem exprimir um grito de pânico e desespero. O tema que abriu o movimento é ouvido várias vezes e desenvolvido no que pra mim se parece com uma fuga, em variações não muito longas. Isso mostra uma pessoa buscando a solução para os seus problemas. Me soa como uma pessoa racional, que nãos e perde em devaneios como eu, pois as variações são curtas, não muito floreadas nem muitos imaginativas. Desenvolvidas no ponto certo. Também me parece que se trata de uma pessoa que não consegue se controlar, talvez seja eu, e que, por mais que tenha problemas a resolver, volta sempre o pensamento para aquele pequeno problema sem muita importância que na verdade toma de conta de todo o seu coração. Estou longe de casa, tive de abandonar a tudo e a todos. Não pude sequer me despedir e nem dizer ao homem que eu amava do que eu sinto por ele. A marcha de morte que não quer sair da minha cabeça é o acompanhamento do meus próprios sentimentos que foram sepultados. 

O Allegro do 2° movimento começa num suspense assustador, uma batalha feroz, uma corrida contra o tempo. Uma apresentação fantástica essa entrada, simplesmente magnifícia e perturbadora. Milhares são os sentimentos que dela afloram. De fato, o personagem principal dessa obra é um louco, completamente alucinado, perdido em seu amor doentio por um jovem que nunca viu, senão por algumas fotos. Uma aura escura toma conta da atmosfera, como se mesmo em sua tão real visão de um mundo ideal, ainda pairasse aquele conhecimento da verdadeira realidade, daquela realidade trágica, onde as pessoas tem olhos para tudo e para todos, menos para o louco, que por ser louco, afasta de medo todos aqueles que dele se aproximam. A risada do demônio do primeiro movimento aqui se revela ser a risada do próprio alucinado. Esse pobre desgraçado enlouqueceu depois de ter sido abandoando pelo homem que amava, e que fugiu com outro para o Novo Mundo, atrás de construírem lá, uma nova história. Depois disso, ele se apaixonara algumas vezes, tentara relacionar-se, mas os estragos foram tão profundos que ele acabou por perder-se completamente num mundo só dele, onde imagens de suas tórridas paixões se mesclam com nuances de preto e roxo numa realidade completamente ácida e perturbadoramente sombria. Acenos de leveza e graciosidade são ouvidos aqui e ali, pontuadamente, em meio ao clima mórbido. São reflexos da sanidade que lhe restou, mas que não deverá durar por muito tempo. Já disse que tudo isso se passa na mente perturbada de um jovem internado num hospício, amarrado seguramente, pois ameaça a si e aos demais. 

As imagens que se seguem no panorama visual desse maníaco são vários fragmentos do rosto de um desconhecido. Ele conhecera esse rapaz, mas de fato não se recorda de sua face. No entanto, se interessara por ele quando, num momento de fraqueza emocional, o vira numa foto, e desde então comunica-se com esse pobrezinho à distância. A aura de medo é cada vez mais acentuada, e os tímpanos soam como a única fuga para a realidade, como se impedissem que ele vislumbrasse por completo a paranóia que criara, um mundo completamente imaginário, onde todos seus desejos são cumpridos a sua vontade. Seriam essas imagens os efeitos da forte medicação passando? E então nosso louco se encontra vagando no limbo entre o étereo mundo dos sonhos e a macabra realidade?

Ora, mas os remédios são administrados em intervalos regulares, quando seus efeitos começam a diminuir, é hora de tornar a viajar para o mundo cor de rosa dos sonhos, ainda que artificiais. E assim começa uma viagem de volta ao País das Maravilhas, criados por uma mente doentia. Nesse mundo, nosso jovem vive alegre com um desconhecido ao seu lado. O jovem com quem mantivera contato, e que fora extremamente simpático com ele, nesse mundo, não demorou a declarar o seu amor. Os dois logo se casaram, e depois se mudaram para uma cidade do interior, um pequeno povoado. Onde poderiam viver mais sossegadamente os primeiros anos de suas bodas. Adquiriram uma bela casa. Pelas janelas do fundo, veem belos campos verdes, onde crianças correm e brincam alegremente. As mulheres e os homens que passam na rua sorriem e acenam para o nosso jovem casal em expressões sem rosto. Não se deu ao trabalho de imaginar as faces dessas pessoas, someye desejou que fossem simpáticos e que não se importassem que tivessem duas abominações vivendo entre eles. Mas essa realidade feliz é quebrada pelo retorno do suspense, que revela o perigo por detrás dessa imaginação toda.

Sua carência fez imaginar um homem perfeito ao seu lado, que embora anos mais novo, é saudável e forte, sinal de proteção. Mas que na verdade, tem a mesma face inexistente dos outros moradores do povoado. Trata-se de um problema novamente em sua medicação, mas ele não é arrancado dessa realidade mais uma vez, apenas mergulha num estranho torpor. Um torpor que se inicia nas extremidade e cada vez mais se aproxima do seu coração. Ele ainda se sente estranhamente feliz e satisfeito com o mundo imaginário que criara. Imaginou uma cidade em vários detalhes, esquecendo-se apenas dos rostos dos seus vizinhos. As calçadas e escadarias de pedras meticulosamente cortadas e encaixadas caprichosamente, uma igreja no centro, ainda vazia, esperando a hora de começar a Missa das 17h. Quando finalmente chegamos no ápice de sua criação, podemos andar por toda a cidade, e visitar seus lugares mais interessantes. Oh, como é poderosa a mente de um louco. Inacreditável a forma como ele consegue se imagianr feliz ao lado dessa pessoa que ele nem sequer consegue se lembra da voz. Uma estranha euforia se apodera de nosso alucinado. Um calor irrompe por suas extremidades, são os sentimentos de sua paixão sexual aflorando. E até aqui a riqueza dos detalhes de sua criação impressionam. 

Impressiona também a força demonstrada pelos instrumentos em todos os movimentos que ouvimos até aqui. Essa dimensão é entrelaçada de tão maneira com coisas reais, que quase parece ser plausível considerar a sua existência. 

Mas agora não há mais oscilação na medicação de nosso pequeno, e el pode mergulhar por completo no seu mundinho da fantasia. E assim, a harpa do Adagietto do 4° movimento marca a entrada permanente nesse mundo dos sonhos, onde apenas a sua vontade alucinada de ser feliz é ouvida. Então de volta a sua pequena, mas aconchegante casa, ele espera seu amado de volta do trabalho. Ele entra sorridente, sentindo o cheiro de uma saborosa comida, cansado da labuta, e ainda dominado de saudade. Como o casamento ainda é recente, ficar longe de seu amado é difícil, mas ele o faz com alegria, se isso significar que, ao final de cada dia ele estará ali esperando, com um belo sorriso e um beijo quente, ansioso por rever os olhos brilhantes a apaixonados se seu marido também desconhecido.

Já é noite, e as estralas brilham no forte no céu, com uma lua azul que também reina gloriosa, as vezes mais esplendorosa que o próprio sol. A noite parece ser mais apropriada para a alucinação do nosso herói. Ao passo que eles se aproximam da hora de dormir, e a noite vai escurecendo cada vez mais, ele sonha com as doces lembranças que já tem juntos. Um dia num delicioso campo florido. Brincadeiras ao ar livre, a brisa fresca nos cabelos. Eles correm e caem abraçados na grama, risadas e beijos apaixonados se revezam num quadro belo e doentio. Aqui e ali, pairam auras de suspense, que logo cessam e cedem lugar a alegria novamente. São como lembretes da realidade. 

Eis que nos aproximamos do grande final, o Rondó do 5° e último movimento (não, eu não saltei um, apenas não mencionei o 3° nomeadamente, apesar de ter falado sobre ele). Aqui é onde a felicidade se constrasta com mais clareza. O mal é apenas uma lembraça da realidade, enquanto que o bem é a dimensão do sonho criada com o auxílio dos remédios do hospício. Ele se encontra novamente nos braços fortes do seu amado. É ali que ele deseja estar para todo o sempre. Sentindo-se confortável e seguro, sem ter de nunca mais voltar para a realidade fria e assustadora, onde ninguém o quer. Aqui é mais aconchegante. Aqui ele pode amar livremente, e aqui ele é amado em resposta. A certeza disso vem das carícias trocadas na cama, na noite apaixonada de amor que se seguiu ao passeio no campo florido. Essa é a realidade florida e cor de rosa, o retrato doente da felicidade pela fuga. 

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Obs.: O texto em itálico foi retirado daqui.

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