quarta-feira, 15 de junho de 2016

O feroz campo de batalha da Trágica de Mahler

Bom, não é nenhum segredo que eu gosto de obras trágicas e dramáticas. Já falei sobre obras que me despertaram vários sentimentos, e que principalmente, me deram a oportunidade de refletir sobre a vida. Gosto dessas obras, que despertam em mim coisas adormecidas que nem eu mesmo sabia sentir. 

A obra escolhida dessa vez é a Sinfonia n.º 6 em Am de Gustav Mahler, por vezes chamada de Trágica e que foi escrita entre 1903 e 1904. Eu selecionei trechos de alguns artigos e enquanto escuto a essa bela peça, vou traçando um panorama entre as opiniões dos críticos e a minha impressão pessoal.

Talvez devido à complexidade ou ao carácter especialmente severo, de rutura e pessimista, a sexta não figura entre as sinfonias mais populares de Mahler para o público em geral. É, no entanto, reconhecida por muitos como uma das suas melhores obras, e é considerada como uma sinfonia que exige um grande estudo por parte dos maestros e das orquestras.

Nunca antes se tinha usado numa sinfonia dois instrumentos: a celesta, que Mahler descobrira em 1903, e o xilofone, que não utilizaria depois. O chocalho ou caneca de vaca simboliza a solidão humana na natureza; o martelo, o destino; o xilofone, o riso do diabo; os graves sinos, um credo religioso.

No caso do "martelo" (Hammerschlag) que se escuta até três vezes no movimento final, Mahler estabelece que o seu som deve ser um golpe curto e potente, mas não metálico. Tal constitui um problema para a interpretação da obra, pois um martelo sem nenhuma caixa de ressonância seria dificilmente audível longe da orquestra. Na versão final da obra, Mahler eliminou o terceiro golpe de martelo, o que diz muito da importância simbólica que o autor atribuía a estes "golpes do destino". Atualmente costuma utilizar-se uma grande caixa oca de madeira, que se golpeia com um grande martelo, também de madeira.

A sinfonia tem quatro movimentos, passemos a ouvir cada um deles:

1. Allegro energico, ma non troppo. Heftig, aber markig

O primeiro movimento começa com uma marcha militar. O que pra mim é uma clara referência a uma batalha interna do compositor, que aqui eu chamarei de nosso herói. Para mim, a grande maioria dessas obras mais "pessoais", por assim dizer, se tratam na verdade de trechos de uma auto-biografia. Quando seus sentimentos transbordam, eles se matrealizam através da tinta nas partiras e então temos o que eu gosto de pensar como sendo a massificação da alma do compositor. Essa seria então uma máxima da afirmação que diz que a música é a arte de transmitir os afetos da alma mediante o som. 

Com um início aterrorizante, entram os contra-baixos com uma respiração ofegante, prenúncio de que o pior se avizinha.

Esse movimento é simplesmente magnífico. Uma tremenda guerra é travada entre o nosso herói e o destino. Penso eu que a cordas aqui representem o medo e a melancolia do guerreiro em meio às suas batalhas, mas ele mal tem tempo para pensar sobre essas coisas, e talvez esse seja o seu erro, talvez essa seja a fraqueza explorada pelo destino. As passagens mais lentas fazem jus ao apelido atribuido a essa peça. São trágicas, profundas, carregadas de um poder imenso, mas ao mesmo tempo revelando a face humana e vulnerável do guerreiro. 

O primeiro andamento encontra-se numa forma allegro de sonata, em que o primeiro grupo temático é uma marcha militar pontuada por fanfarras e percussão. Estes traços são frequentes na obra sinfónica de Mahler, que integra e transforma os sons do quotidiano nas suas obras, de forma a enfatizar o seu sentido narrativo. O segundo grupo temático, de carácter cantabile, encarna a pungência das melodias mahlerianas, diferindo contrapontisticamente as resoluções harmónicas. Assim, o compositor cria longos temas em arco cuja tensão é evidente. Alma Mahler referiu que esse tema a representava, o que reforça o cunho autobiográfico da obra. Com uma grande ambiguidade entre os modos maior e menor, o desenvolvimento prossegue numa atmosfera bucólica ilustrada e enfatizada pelo recurso aos chocalhos. Dessa forma, o mundo real e a abstracção sinfónica encontram-se sempre interligados. A reexposição é realizada na íntegra, conduzindo a sinfonia ao segundo andamento.

A audição desse movimento é um desafio e tanto. Não por ser difícil de se ouvir, mas por ser complicado controlar a carga emocional que percorre quem o escuta. É como se uma corrente elétrica percorresse todo o corpo do ouvinte, levando-o a querer erguer-se e lutar ao lado herói. Os violinos especialmente aqui tem a capacidade de demosntrar um sentimentalismo tão forte que é quase como se fosse possível tocar as espdas ensaguentadas daqueles que lutam por suas vidas. Essas espadas no entanto não são armas reais. A luta pela vida é interior. E toda a guerra acontece dentro do coração do compositor. Impossível evitar bater os pés no ritmo bem marcado da marcha, e imaginar os canhões disparando contra um jovem soldado que apenas quer defender sua pátria, sua amada. 

Os chocalhos de fato dão uma aura solitária a obra. Podem soar destoantes do resto do movimento, mas é justamente esse o objetivo, mostrar que lutamos sozinhos, sem apoio, sem esperança, e só não desistimos porque o salário do covarde é o esquecimento de si e do seu amor. E Mahler me parece ser um homem extremamente apaixonado, preocupado por demais com o bem estar dos que o cercam. Talvez esteja completamente equivocado com essa opinião pois não estudei a fundo a vida do compositor, mas que esse movimento me soa como alguém que quer proteger a vida que ama, isso eu não posso negar.

O homem é de fato uma criatura solitária. Por mais fraco que seja, tem de travar suas batalhas sozinhos, se não, é engolido pelo estrondoso exército do destino. E é essa belicosa tropa que esmaga o herói que bravamente continua se levantando após cada golpe, ainda mais forte do que era antes, e tornando a cair, ergue-se mais uma vez para enfrentar seus algozes. Mas até quando ele resistirá? Trava sozinho uma batalha contra as tropas do destino. Vale tudo para proteger quem se ama?

2. Andante moderato

O Andante é de beleza triste, uma página tocante; é a lembrança de tudo o que foi bom, ou que poderia ter sido, mas com um toque de abandono sem remédio. O Andante contrasta temática e tonalmente com o andamento anterior, e concentra-se na apresentação de uma melodia pelos vários naipes da orquestra, ao qual é adicionado um contratema pungente.

Se algumas passagens do movimento anterior demonstravam solidão e melancolia em meio ao feroz campo de batalha, esse movimento inteiro é uma amostra do torpor e da nostalgia que toma de conta da alma do nosso herói. 

Ele recebeu um forte golpe na cabeça. Caiu desacordado e, enquanto recupera a consciência, imagens esfumaçadas passam em sua mente. Seria um flashback de sua vida, como as pessoas costumam acreditar que vemos antes de morrer? Talvez. Mas logo as imagens vão ganhando nitidez e cor, e ele pode distiguir momentos felizes de sua vida que passam em sequencia a sua frente. Ele se vê então de novo num colorido campo florido, com sua amada vestindo um belo vestido rosa. A brisa suave toca carinhosamente o rosto dos dois. Mas a orquestra vem como um tsunami, quebrando essas imagens de forma que ele não consegue tocá-las, somente sentir as lágrimas escorrerem quentes em seu rosto sujo e manchado da batalha. O solo do violino mostra essa solidão e essa lágrima de forma rápida, porém clara. E uma aura de suspense é sentida em todo o movimento, como se algo grande estivesse pra acontecer, como se logo o nosso herói fosse se erguer e voltar a lutar bravamente, ou como se finalmente deixasse ser vencido pelo exército inimigo. Mas ele mesmo inconsciente continua a lutar. 

As ondas grandiosas da orquestra dão um cárater ainda mais dramático ao trecho. Seria isso desespero. Nosso herói finalmente percebera que trava uma batalha impossível de ser vencida? Ou o destino decide brincar com sua inútil defesa e dispara golpes poderosos, para tornar a ver seu brinquedo tentar erguer-se novamente, cada vez mais machucado? Por algumas vezes vemos a respiração falhar, sentimos as pernas fraquejar e os olhos marejar, mas nosso bravo herói ainda ão desistiu.

3. Scherzo: Wuchtig

O Scherzo em forma tripartida retoma a marcha do primeiro andamento, transformando-a e distorcendo-a numa dança popular. Essa dança é interpolada duas vezes por um Trio ritmicamente irregular, que emerge e submerge na textura de forma discreta, e que pode ter sido influenciado pelas brincadeiras das filhas de Mahler.

Nos assustamos novamente com a marcha do primeiro movimento que dessa vez se apresenta mais variável e menos organizada. Penso nesse trecho como o momento em que o exército do destino, convencido de sua força obviamente superior, brinca com o inimigo. Alguns soldados mais sádicos se destacaram do pelotão e puseram-se ao redor do guerreiro caído. Acertaram a sua cabeça com força, e riem dele gostosamente enquanto assistem a suas tentativas de reerguer-se. Nosso guerreiro é duramente humilhado quando, de pé, desfere golpes contra o ar, atordoado pelos golpes que levara na cabeça. Ele é então derruvabdo mais uma vez e amarrado. 

Os soldados sentam-se então para comemorar a fácil vitória e prendem o herói numa árvore próxima. Alguém traz algumas bebidas e logo eles se embriagam com o ópio que lhes dá uma gostosa sensação de alegria. Começam as incessantes risadas e zombarias. Nossa herói, ao fundo, lentamente recupera a razão e começa a tentar soltar-se, antes que os inimigos, já bêbados, percebam novamente sua presença e dessa vez acabem com ele de vez. Então sorrateiramente consegue aos poucos ir soltando as amarras que o prendem. 

Num plano emocional, sinto como se Mahler tentasse aos poucos pensar numa solução, numa saída paras seus problemas. E sabendo que na verdade, seus problemas começaram pouco tempo depois do término dessa obra, penso eu que sua composição tenha sido uma clarividência de como seriam seus  agonizantes dias finais. 

4. Finale. Allegro moderato — Allegro energico

A sinfonia termina de forma inesperada, num longo e complexo andamento em que a ambiguidade e a hibridez se fundem. Nesse contexto, a forma allegro de sonata e os seus temas são transformados de forma a maximizar o potencial narrativo da obra, atingindo o clímax. Dessa forma, Mahler retoma as texturas dos andamentos anteriores e expande os diversos elementos previamente apresentados. Paralelamente, o som dos sinos enfatiza o contaste e as mudanças abruptas de atmosfera, direccionando o caminho do ouvinte.

O Finale traz de volta a sofreguidão, mas com suspense: afinal, nosso herói ainda luta.

Mas tal luta é desigual, tamanhas são as forças do destino. Mahler pede um imenso martelo, que nesse último movimento desferirá 3 golpes contra o herói, sendo o último deles fatal. “O herói morre de pé, como uma árvore”, disse Mahler, talvez falando de si mesmo. Quando bem colocado pelo maestro, esse golpe seco do martelo causa no ouvinte um vazio no estômago difícil de superar.

O nosso herói conseguiu se soltar das amarras do destino, mas agora, precisa lidar com os inimigos que perceberam sua fuga. Ele agora, mais do que nunca, tem de lutar por seu amor e por sua vida. Mas os soldados não querem mais brincar, querem a morte do nosso herói, e assim, numa espécie de dança macabra é que somos levados ao início do último movimento dessa obra gigantesca. Essa dança macabra revela a maldade e a sagacidade do destino, que mesmo desejando o sangue derramado do herói, ainda lhe mostra, à duras penas, o quão sádico ele pode ser em suas torturas. 

Mas percebo que não sabemos ainda a origem do nosso herói. Nosso guerreiro era um homem simples, que certo dia, voltando dos campos onde ganhava a vida, retornando para casa, fora capturado por um grupo sanguinário que diz querer violar sua mulher e filhas depois de acabar com ele. São homens que perderam para ele em uma grande aposta dias atrás e que, insatisfeitos, foram atrás de vingança, mas chamaram muitos conhecidos, e por serem homens influentes, armaram um verdadeiro exército para satisfazer sua vingança. Claro, isso se passa mais dentro do coração do que de fato acontece de verdade. A verdadeira batalha interior é aqui tão abstrata que assim se materializa para então dar uma pequena centelha de esperança aquele que luta. 

Em algumas passagens vemos o clima de suspense se acentuar. Em outros, notamos a aura sádica do destino. É uma luta deveras desigual. Mas aquele que perde golpeia o gênio virtusoso ferindo-o mortalmente. A vitória é difícil, mas é possível, tudo vai depender da força de vontade em querer proteger aquilo que ele ama. Nosso herói a muito deixou de preocupar-se com sua vida, mas sabe que para ter sossego e garantir a segurança de sua amada e filhas, vai precisar acabr com cada um dos seus algozes. Alguns jazem já caídos sob seus pés e a batalha se desenrola numa longa e sangreta luta. Ele sente que suas forças começam a dar sinais de um grave ferimento, com o primeiro golpe do martelo do destino. Talvez algumas de suas costelas tenham sido quebradas, mas no calor da batalha isso não é sentido. Ele não tem tempo de sentir dor, ele precisa lutar. Não, ele precisa vencer. Continua dando tudo de si em cada investida, em cada ataque. Mas o segundo golpe do  martello do destino muda o cenário da luta, e aquele que, por um momento de fúria parecia ser capaz de derrotar sozinho o exército inimigo acaba sucumbindo. Ainda não está morto. Mas jaz caído, cansando e ensanguentando. Ossos quebrados perfuram os pulmões que tentam manter o ritmo. O coração começa a falhar. Os inimigos riem-se dele. Aos poucos sua visão se turva e as imagens que antes passaram sob sua mente retornam. O chocalho da solidão retorna, bem como as lágrimas do violino. Nosso herói está caído, quase morto, sob a luz do luar, totalmente entregue a vontade dos seus carrascos. Sua espada, que conseguira roubar de alguém que derrubara, aos poucos é solta de sua mão. A outra ainda cerrada em riste, pronta pra atacar, mas sem força pra tal feito. 

O grandioso que se segue após o segundo golpe é um reconhecimento das heróicas virtudes deste que agora ház caído e moribundo, irreconhecível pelo sangue que lhe cobre e pelas feridas abertas, mas valioso por seu coração nobre, capaz de lutar para proteger quem tanto ama. Mas é também desespero, pois ele sabe que, perdendo ali, suas amadas serão as próximas a serem atacadas, não com espadas e açoites, mas de uma forma muito mais brutal e violenta. E ele percebe que sua fraqueza tem um preço muito alto a se pagar. Desculpas silenciosas saem dele na forma de numerosas lágrimas, por sorte, os inimigos inebriados pela morte não as notam. Lentamente então sua via se esvai, com os ferimenos jã tão numerosos, ele sente todas as suas forças irem embora, bem como a luz dos seus olhos. Ate as risadas dos algozes é agora silenciada pela imagem de suas amadas, sua esposa suas filhas que, a esta hora, estariam a porta, preocupadas, a sua espera. E finalmete é lhe dado o golpe de misericórdia, não com mais um martelo, mas com um tsunami arrasador de toda a orquestra, que coloca um fim ao heróico último dia de nosso bravo guerreiro.


A "sexta" é a única entre as sinfonias de Mahler que termina de forma inequivocamente trágica. Mahler foi um compositor com claras conotações "trágicas", mas o facto é que a maior parte das suas sinfonias termina de forma triunfante (n.º 1, 2, 3, 5, 7 e 8), enquanto outras terminam com um clima de alegria (n.º 4), tranquila resignação (n.º 9) ou calma radiante (n.º 10). A conclusão trágica, até niilista da n.º 6 é considerada como particularmente inesperada, já que a obra foi composta numa etapa especialmente feliz da vida de Mahler: tinha casado com Alma Schindler em 1902, e durante o decurso da composição nasceu Anna, a sua segunda filha.

E essa foi a minha percepção dessa obra magnífica. 

A inspiração pra esse post me veio ontem, pouco antes de dormir, quando buscava me lembrar justamente de alguma música trágica para dar continuidade aos posts que fiz com as sinfonias do meu amado Tchaikovsky. E me lembrei do tak martelo do destino, resolvendo então escrever sobre esta que agora, depois de ouvir com mais atenção, se tornou uma das minhas composições favoritas.

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Fontes dos textos em itálico:

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