segunda-feira, 20 de junho de 2016

O desesperado grito de fúria de um louco alucinado


Ah, como é bom, sentar aconchegado no quarto escuro, com uma playlist da hora e os efeitos do vinho começando a bater. Claro, com ele vem a desilusão, o sabor amargo da solidão logo depois do sabor suave da bebida. Além da bebida da alegria, nessa fatídica noite de segunda me faz companhia aquela que provavelmente me marcou mais profudamente a minha entrada no mundo da m´suica clássica. Foi a primeira obra que. além de ouvir inteira, eu ouvi de forma reflexiva e contemplativa, chegando a um clímax que não achava ser capaz de alcançar através da música. 

Mesmo já tendo uma relação de grande admiração pela música na época, foi o Concerto pra Piano N° 2 Op. 18 em Cm do Rachmaninoff o primeiro concerto pra piano com que tive contato e a primeira música erudita, dita clássica, que me fez ter um atitude de verdadeira veneração. Por tempos o seu 1° movimento foi inclusive a minha música favorita, sendo que mais tarde eu cheguei a conclusão de que não há necessidade de constante criar uma lista de músicas favoritas e me limitar a considerar essa ou aquela como as minhas amadas. Na verdade, é mais proveitoso pensar nas músicas que mais me trazem sensações, tanto boas quanto ruins. E ultimamente eu tenho uma porção delas. 

Já falei mais demoradamente sobre o poder que a música tem de trazer a tona os sentimentos mais profundos da alma. E de como eles surgem desses mesmos sentimentos que afloram nas notas escritas sob a partitura. E um outro fator que muito me admira nessa arte idílica é a capacidade que ela tem de imortalizar seus compositores. Ninguém se lembra de quem tocou Beethoven, todo mundo tocou Beethoven, mas todos sempre vão se lembrar de Beethoven.

Eu ouvi o Rachmaninoff pela primeira em Nodame Cantabile, um dos meus animes favoritos, e desde então ele virou nome obrigatório na minha playlist, principalmente nos momentos de bad. A excitação que esse concerto me provoca é comparável a um beijo apaixonado,  não raramente aind melhor que um beijo. Depende de quem ta beijando, claro. 

Essa é uma obra emblemática, obrigatória em qualquer orquestra que se dê o respeito e pra qualquer pianista. Mas não significa que seja de fácil execução, muito pelo contrário, exige uma técnica e uma delicadeza extrema, então mesmo sendo tocada muitas vezes, poucas audições são dignas de crédito. Mas quando tocado direito, ah meu irmão, é simplesmente sublime, impossível não se emocionar e em alguns casos, as lágrimas não podem ser contidas. É por isso que esse concerto é pra mim um hino da vitória sobre a depressão. 

Ela foi escrita tempos depois de o Rachmaninoff ter sofrido um colapso nervoso e de quase te abandonado o meio musical, abalado pelas críticas severas a sua 1° Sinfonia. Mas como pode se observar, ele conseguiu superar, e em grande estilo, se eternizando no meio musical pra todo o sempre. Alguns críticos afirmam que essa música seja uma auto-afirmação do compositor de sua recuperação, como se ele dissesse um não permanente à depressão e ao vitimismo. Eu discordo, penso nela como alguem que conta a história de sua luta, não um hino a vitória, e como tal, ela seria um hino de sua destruição interior. Já sua vitória, acredito ser bem expressa no concerto de n° 4 ou na sinfonia de n° 3. Foi escrito na tradicional forma de sonata e consta de 3 magníficos movimentos... 

1. Moderato 

O concerto começa com uma repetição de 8 acordes, que num crescendo, vão aumentando de intensiaded até que abram espaço para a apresentação do belo primeiro tema da peça. Essa abertura me soa como socos rápidos no estômago, seguido de um gigantesco tsunami. Como eu disse, essa peça pra mim fala do estado da depressão e esse movimento em particular mostra a loucura em seu estado máximo, aquele onde não mais é possível separar o que é real do que é imaginário devido a tremenda dor que se sente. Apesar de saber que muito provavelmente não fosse isso que o compositor sentia enquano compunha, é impossível pra mim pensar nessa peça de outra forma que não seja imaginar um panorama visual onde o homem tenha deixado sua mente destruir-se por amor. Foi abandonado? Perdeu para a morte? Não o sabemos. Só o que enxergamos aqui é dor, desespero. 

Os arpejos rápidos e poderosos bem como os andamentos mais rápidos do movimento me mostram claramente um homem correndo sem destino, tentando aliviar sua dor através do cansaço, pela ruas de uma Londres cinza e sem vida, perseguido continuamente pelos asseclas do destino, verdadeiros demônios que povoam sua mente de pensamentos tão grotescos que o levam a loucura. Aqui eu sinto como Rachmaninoff tivesse derramado cada dor de profunda depressão através das páginas da partira, quase consigo tocar o seu sangue derramado pelas teclas brancas e negras do piano cor de ébano, onde ele entregou sua própria vida. 

Ele vê sombras pelas paredes, uma risada macabra ao fundo, e entra num beco sem saída. Não há mais para onde correr, e então ele se abaixa encostado a uma parede, em meio ao lixo, e é então dominado por um estranho torpor. Mas não permance nesse estado por muito tempo, esse torpor será explorado no segundo movimento, aqui continua a predominar o desespero, o terror pela perda que acaba de se suceder. Cada nota do piano soa como um grito de dor e medo, enquanto a orquestra paira como uma névoa sombria a sua volta. Episódios de desespero e torpor se alternam num complexo vórtice que culmina num desesperado grito de fúria. Fim do primeiro movimento.

2. Adagio sostenuto

Nosso herói acorda de pé num corredor claro e desconhecido. De um lado, janelas e paredes, do outro, um grandioso jardim. É uma casa de recuperação. Um asilo para loucos. Se no primeiro movimento somos apresentados a um personagem louco e deseperado, aqui vemos ele alcançar o ápice de sua loucura com a insanidade completa. Enquanto as teclas do piano ressoam como as lágrimas de um grande amor que se perdeu, a orquestra interpreta o torpor provocado pela medicação e pela reaçãod o corpo em anestesiar a dor insuportável de sua alma e seu coração.

Não se lembra como fora parar ali, provavelmente enlouquecera completamente depois de ter gritado naquele beco escuro e úmido, acordara ali, de pé, num lugar estranho. Suas lágrimas escorrem sem parar, e ele se abaixa novamente contra a parede, numa tentativa de buscar apoio externo a sua aridez interna. Ele se lembra com uma dor excruciante dos momentos felizes que passaram juntos e todo o seu corpo protesta contra a dor que avança sob cada músculo, sob cada osso. Já deitado no chão frio, ele grita de dor, e é então socorrido pelos funcionários do hospício, mas os remédios não curam sua dor, apenas a limitam no campo físico, mas a dor do coração é ainda maior e parece não ter fim. Ele começa a considerar o suicídio, mas teme viver aquela dor eternamente no inferno, então decide corajosamente tentar sobreviver. Sobreviver a dor, ao medo, ao desespero. A todos os sentimentos que o assombram após a perda de seu amor. A névoa amendrontadora da orquestra novamente paira ao redor do seu leito como um prenúncio da morte, como se dissesse que apenas espera o seu consentimento para ceifar a sua vida. É como se ele pudesse tocar o manto negro da morte, e sentir o brilho frio de sua foice. Mas não é como ela fosse feia e temível, não, a morte é bela, tão bela quanto a pessoa mais bela que ele já viu e amou. A morte tem a face de seu amor. E ele a contempla novamente, deposi de tanto tempo. Fim do 2° movimento.

3. Allegro scherzando

Suspense, palavra que define mais perfeitamente esse último movimento dessa peça magnífica.

Nosso herói, em seu quarto, contemplando a face da morte, nota que ela na verdade tomou a aparência de sua amada, na tentativa de esconder sua aparência macabra. E quando se dá conta de sua verdadeira natureza, ele se põe a correr. Mas percebe que já fora a muito arrastado para um túnel escuro e úmido, longe da segurança de onde cumpria sua reabilitação. Esse movimento retrata então a luta propriamente dita contra a depressão.

Ele corre sem parar, ofegante, deixando para trás a morte, mas ainda sentindo sua presença ameaçadora. Consegue sair do túnel, onde seria seu túmulo, e entra num bosque também deveras sombrio, mas não tem tempo de sentir medo, ele precisa fugir. Essa fuga aqui tem dupla caracteristica. O fato de ele correr sem parar simboliza na verdade seu esforço para recobrar a razão e a consciência. Uma luta desesperada que, de tão profunda, assumiu uma forma física. Lampejos da realidade já podem ser visualidados, agora numa matiz colorida, em oposição ao cinza que até agora enevoava sua visão. As lembranças dos momentos felizes são aqui lembradas com alegria e não mais tristeza e nostalgia. É uma longa corrida, aqui e ali e tropeça e cai, se desespera ou é novamente encoberto pela névoa da morte e tomado pelo torpor, mas novamente se levanta e volta a caminhar, mais lentamente, até conseguir recuperar o ritmo da corrida. Não há tempo a perder, ele precisa voltar, ainda há muito a se fazer, muitos objetivos a se cumprir, um nome para marcar na história e uma obra magnífica para escrever e dedicar secretamente ao seu amor.

Finalmente ele consegue visualizar as peredes de concreto do hospício. Consegue ver as luzes da cidade que se projetam por detrás da construção. Ele precisa atravessar e corre, corre como nunca o fez em toda sua vida, alcança a instituição e passa por ela, recuperando sua consciência, sua razão. Jã não é mais uma visão, ele precisa agora sair de verdade, enfrentar o mundo e a morte desse mundo de verdade. Frente ao portão que lhe dará a liberdade ele visualiza as batalhas que o levaram ali, e agora, fortalecido por cada umadas cicatrizes deixadas pelos violentos combates com a morte, ele tem uma certeza, é agora um homem livre.

Ele é Rachmaninoff!


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