quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O Amado


Eu dormia, mas meu coração velava 
E ouvi o meu amado que batia 

Quando amamos, mesmo no sono não deixamos de pensar no objeto de nosso amor. Mesmo durante o sono o nosso coração se dedica aquele por quem ele bate. 

Quem ama deseja então ser útil ao amado, e mesmo a noite sonhamos com ele batendo a nossa porta. Esse sonho é nada mais pois do que uma manifestação do desejo que temos de que o amado venha até nós, que ele venha nos procurar. No nosso íntimo desejamos que ele venha até nós. 

Aqui, a alma se sente desejosa do amado, mas quer que ele dê o primeiro passo ao nosso encontro, pois o medo da rejeição fala mais alto, resultando então nesse sono velado da amada, que não consegue tirá-lo do pensamento.

"Abre, minha irmã, minha amada, 
Pomba minha sem defeito. 
Tenho a cabeça orvalhada, 
meus cabelos gotejam sereno." 

Quando o amado então finalmente bate a nossa porta e nos chama, suas palavras soam doces como um poema de amor. Ainda que ele não tenha dito de verdade nada disso, em nossos ouvidos sentimos essa doce poesia que é ter o amado clamando por nossa presença.

Quando ele nos pede ajuda, desejado de nosso amor, sentimos como se ele se tornasse nossa única grande prioridade na vida. Como se ele estivesse na chuva, pedindo por um abrigo caloroso. Esse abrigo não é outro senão o nosso coração. 

Apenas em nossa morada interior o nosso amado pode encontrar conforto e acalento. Isso porque nosso amor é o único capaz de agradar o coração do amado. 

Os cabelos do amado gotejam com o sereno do mundo, quando as coisas o influenciam de tal forma que ele passa a transbordar as coisas seculares, mas no seu íntimo, ele sabe que apenas o amor pode oferecer a ele as respostas que ele tanto busca.

Ponho-me de pé para abrir ao meu amado 
Minhas mãos gotejam mirra
Abro ao meu amado, mas o meu amado foi... embora.

Quando a voz do amado chega ao nosso coração por meio de nossos ouvidos o nosso corpo desperta num instante! Prontamente dispostos a servi-lo nos colocamos de pé num salto, gotejando mirra, isto é, preparando nosso melhor para o amado.

Nosso desejo é de deixá-lo entrar em nossa morada, que ele sinta-se perfumado com a mirra de nosso amor e dessa forma não queira mais ir embora. Na morada de nosso coração ele será para sempre servido de nosso amor, e alimentado com nosso carinho não sentirá em si mais nenhuma necessidade de voltar ao mundo, para novamente se ver gotejado de sereno e orvalho frio.

No entanto, parece que o mundo não deseja permitir que o amado se encontre com a amada, e assim, ao abrirmos a porta de nossos corações a ele, vemos que nosso amado se foi...

Encontraram-me os guardas que rondavam a cidade. 
Bateram-me, feriram-me, tomaram-me o manto, tomaram-me o manto... 

Nos colocamos então em marcha pela cidade buscando pelo nosso amado. Como uma bússola encontramos apenas no amado o destino de nossa busca. Nosso mundo se volta para ele e mesmo a distância sentimos o caminho para onde devemos ir. 

Então, aquela alma que estava desejosa do amado, mas que queria que ele desse o primeiro passo esqueceu-se desse orgulho e se põe então a buscar e a correr por ele.

Inicia-se então o sofrimento da alma em buscar pelo seu amado. 

A alma corre em direção aquele que é a razão de seu viver, mas os guardas que pela cidade caminham a noite não querer permitir que eles se encontrem. Esses guardas são as forças do mundo que buscam apenas impedir o encontro da alma e do amado.

Isso se dá pois o amor, em sua plenitude, quando dois amantes se unem sob o signo do amor, é uma força que desperta no mundo medo e inveja, e por isso o mundo se coloca a buscar impedir que os mesmos se encontrem. 

Os sentinelas do mundo avançam então com violência sob a alma da amada, desferindo poderosos e covardes golpes e roubando-lhe o esplendor de seu manto. Quem sabe também poderiam ter tratado com essa mesma violência o amado? Tristemente imaginamos então que nosso amor tenha sofrido também a dor que agora sentimos em nossa pele.

Não nos importamos no entanto com nós mesmos. Apenas pensamos no amado que também pode estar ferido em algum lugar do mundo, mas ainda assim não desistimos de procurar por ele, e enfrentamos os sentinelas que nos machucam. Dessa forma, eles se sentem assustados, frente uma alma que não desanima em buscar pelo seu.

"Que é o teu amado mais que os outros, 
Oh mais bela das mulheres? 
Que é o teu amado mais que os outros, 
Para assim nos conjurares?" 

O mundo não consegue compreender então como se dá tal sentimento. Não consegue entender porquê lutamos tanto por nosso amado. E então o mundo nos pergunta o que há em nosso amado para que assim busquemos por ele. 

Meu Amado é branco e rosado, 
Sua cabeça é de ouro puro, 
Como copa de palmeira, seus cabelos. 

Suas faces são canteiros de bálsamo, 
Seus lábios são lírios com mirra, 
Seus braços torneados em ouro, 
Sua boca é muito doce, 
Ele todo é uma delícia. 

Assim é meu Amigo, assim é meu Amado. 

Ao evocar para o mundo a visão do amado, a alma da amada se enche de deleites. Ao descrever aquele que se ama, descreve também os motivos porque se ama. 

Para a amada, o amado é uma visão idílica insuperável pelo mundo, que tristemente cego por suas próprias belezas não consegue conceber a beleza do amado.

Para a amada, tudo no amado é um objeto de deleite e perfeição, e em sua mente, suas feições humanas encontram adjetivos de divindade. O amado é sinal de pureza, pureza de coração que demonstra o amor puro da amada por ele. O ouro, sinal de riqueza e grandiosidade mostra a realeza do sentimento poderoso que os envolve. O corpo do amado é então para a amada seu maior desejo, ficando atrás apenas de seu coração. Ela deseja para junto de si aquele corpo que fora moldado nas forjas divinais que moldaram também as luzes que envolvem os serafins e querubins. Dessa forma, a visão da amada sobre o amado o traz então a si.

Para a amada, o amado é o seu tudo, e ela a ele quer se entregar completamente, pois não há no mundo nada nem ninguém que a ele se possa comparar.

A visão do amado no coração da amada então é então a manifestação de seu amor, e é capaz de então atraí-lo para si. Dessa forma, o amado aparece, rodeado de glórias, vencendo o mundo com o poder que o amor da amada lhe deu. 

"Que é o teu Amado mais que os outros, 
Oh mais bela das mulheres?" 

Eu sou do meu Amado 
e o meu Amado é meu
e o meu Amado é meu...

Por fim, depois de conseguir trazer a si o seu amado, com o poder de seu amor, a amada se entrega a ele completamente, e afirma aos sentinelas, agora submissos ao amado: Eu sou do meu amado!

Estes agora foram subjugados pelo amado, é sendo o amado da amada, não podem mas fazer a ela mal algum. O amado salvou a amada, e o amor da amada salvou o amado!

~

Nota: Os trechos em itálico foram retirados da música O Amado  da Ir Kelly Patrícia que por sua vez foi inspirada pelo Cântico dos Cânticos.

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