sábado, 14 de janeiro de 2017

Ódio

Há alguns anos trago comigo na ponta da língua uma frase do mestre Kishimoto que disse que “Sentimentos são fraquezas, eles nos cegam e nos desviam do sentido do dever”¹ eu gostaria de começar a reflexão dessa noite dizendo que na verdade, ao menos pra mim “sentimentos são fraquezas, que nos cegam e nos desviam do sentido da vida.”

Por vezes somos dominados, ou nos deixamos dominar, por sentimentos que nos fazem mal, sentimentos ruins que apenas podem trazer dor e destruição se alimentados. Esses devem ser enterrados, bem fundo, para que jamais venham a machucar ninguém. Se não for possível fazê-lo, ao menos os guardemos dentro de nós mesmos, sem que eles façam mal a alguém.

Hoje estou dominado por um sentimento que há muito acreditava não possuir nenhum domínio sobre mim: 

ÓDIO.

É com lágrimas nos olhos e no coração que escrevo essas palavras pois pela primeira eu sinto ódio de verdade. Já me disseram que por vezes confundimos sentimentos como rancor e decepção com ódio, mas esse não é o caso, nada mais poderia ser tão ruim e poderoso quanto o ódio que agora domina meu coração e transforma meu sangue no meu veneno que continha naquelas rosas diabólicas reais do jardim secreto de Peixes.

O ódio é o filho predileto da ira, o pecado que liberta nosso monstro interior sedento pelo sangue de nossos inimigos. E o gosto que sinto na minha boca nesse momento é exatamente do sangue que eu gostaria de provar. O sangue daquela que ousou tocar no fruto proibido do meu jardim da vida e que por tal pecado merece a morte. No entanto, sua culpa não como a de Adão, uma culpa tão feliz que há merecido a graça de um tão grande redentor², mas a sua culpa é apenas passível de punição, uma punição eterna de dor, choro e ranger de dentes pelo sofrimento que jamais há de cessar, sofrimento esse que minha alma, manchada pelo ódio, desejar infligir a ela pessoalmente.

Ela ousou cruzar um umbral que havia sido erguido para a sua própria segurança, mas ela o atravessou e pisoteou os jardins do meu castelo interior sem misericórdia. Aquela mulher é um monstro que ousou invadir o santuário onde repousava meu amor, e ali ela profanou aquela terra pura com seu desejo imundo e chafurdou na lama o piso alvo por caminhava o meu amor a observar a luz da lua e das estrelas numa noite clara.

Enquanto isso, eu me encontrava caminhando naquela noite escura, de amor em vivas ânsias inflamada, feliz pela ditosa ventura de sair já estando minha casa sossegada². Mas era uma engano meu, enquanto abandonei minha casa em busca daquela secreta escada disfarçada, ela fora invadida pelo monstro que ousou destruir a única coisa realmente boa e pura que havia ali: aquele que eu amava.

De volta a minha casa, depois de no jardim secreto apenas ter encontrado o leque dos cedros e as açucenas que nada tinham do que cuidar, deparei-me com a mais horrenda das cenas: as vestes brancas haviam sido maculadas pelo sangue da impureza daquela criatura imunda que ousadamente tocou no amado.

Ela, com suas garras, arranhou sua pele branca e delicada e com seus dentes apodrecidos pelos vermes da terra pressionou os lábios vermelhos como pétalas de rosas e macios como a pela das gueixas num átimo de lascívia incontrolável. E agora, essa filha dos vermes da ruína anda a espreitar minha alma para destruí-la também após devorar meu coração e jogar minhas entranhas na frialdade inorgânica da terra.

E agora eu, como disse Augusto do Anjos, "filho do carbono e do amoníaco que enfrento desde a epígenese da infância a influência má dos signos do zodíaco"*¹ encontro o meu verdadeiro nos braços do demônio do ódio, que me faz desejar a morte de uma inocente. 

Não poderia eu ter me tornado um homem pior, influenciado pelas criaturas plasmadas pelas mãos do próprio mal me tornei o tigre a querer devorar com força e impiedade o pescoço do cordeiro inocente. Mas para mim esse cordeiro disfarçou-se de lobo para então atacar aquele cordeiro de pelos dourados que com tanto carinho eu guardava. 

Mas o dourado não é mais símbolo da pureza, pois a perdeu ao sentir o gosto do sangue daquela desonrada senhora que nada mais fez do que deflorar e desfolhar pelo caminho por onde eu passaria o mais puro dos lírios. 

Já não posso mais recuperar também aquela beleza e aquela pureza que antes eram o símbolo daquele cordeiro, pois em mim restou apenas o veneno a correr por minhas veias e que, me destruindo de dentro para fora, acaba por amargar também a vida dos sentem no ar o perfume de minhas rosas.

Mas o monstro impiedoso ainda clama por mais. Ele quer dor, quer desesperança, que e deseja a morte. Quer que ela sinta na carne a mesma dor que eu senti quando soube de tão tórrida notícia. Quer enfiar a espada nas entranhas de sua inimiga. E assim, com o gosto metálico do sangue que a aura da ira imprimiu e oprimiu sobre o meu ser, eu vou dormir com a certe za que sou hoje a pior e mais desprezível das criaturas, por odiar aquela que colheu as flores de um jardim que nunca seria meu.

E agora esse dia de ira, aquele dia, que transformará o mundo em cinza fria se aproxima, e eu pobre que farei? Que patrono invocarei quando naquele triste dia, das cinzas em que jazia resurgir o homem, o réu? Condenados os malditos, sob o fogo ácido e infinito, não serei chamado com os benditos. Por isso gemo tal qual réu envergonhado, sob a minha culpa a tremer prostrado...*² 

~

Notas:

1. Alusão ao Código de Conduta Shinobi citado por Haruno Sakura em Naruto, obra de Masashi Kishimoto.

2. Alusão ao Precônio Pascal, cantado na Solene Vigília Pascal, na noite do sábado santo.

3. Alusão a Noite Escura, poema de São João da Cruz.

*1. Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos.

*2. Alusão a alguns trechos Dies Irae, hino da liturgia romana para a Missa de Requiem.

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