sábado, 6 de agosto de 2016

A delicada euforia de Titã

Minha eterna busca de inspiração para a obra perfeita continua... Hoje, meu objeto de apreciação foi a magnifíca, idílica, grandiosa, Sinfonia N° 1 em D do lindo do Gustav Mahler, mais conhecida como Titã. Bom, a escolha não foi das mais óbvias, pois como eu prefiro as obras mais dramáticas e trágicas, era de se esperar que eu me dedicasse mais as sinfonias que vieram depois de sua 5°. Mas ora, quem disse que um pouco de romance também não faz bem? 

Como de costume, selecionei algumas informações básicas da obra, e adicionei minhas impressões, pois vou escrevendo enquanto escuto. 

Primeiramente, quanto ao nome, ela não se refere a nenhum personagem da mitologia grega, mas sim à um romance. Um caso amoroso do próprio compositor também serviu de inspiração pra composição da obra, mas como ele mesmo disse: Gostaria que ficasse enfatizado ser a sinfonia maior do que o caso de amor que se baseia, ou melhor, que a precedeu, no que se refere à vida emocional do criador. O caso real tornou-se razão para a obra, mas não em absoluto, o significado real da mesma. (...) Assim como considero uma vulgaridade inventar música para se ajustar a um programa, também acho estéril dar um programa para uma obra completa. O fato de a inspiração ou base de uma composição ser uma experiência de seu autor não altera as coisas. E ela foi feita originalmente como um poema sinfônico, não uma sinfonia. Ele também escreveu um programa pra mesma (que eu não encontrei), muito embora depois das primeiras apresentações ele se convenceu que a música devia falar por si mesma e suspendeu o programa (o que considero uma pena, pois realmente adoro a experiência de ouvir peças com esse tipo de proposta). E por esse motivo resolvi escrever o meu próprio. 

Bom, quanto as suas caracteristicas gerais, a obra é uma sinfonia primaveril, semelhante em alguns aspectos com a Sinfonia N° 1 de Schumann (amor eterno). Ela não é contudo uma simples descrição visual da natureza. Ela reflete uma natureza sob os inocentes olhos de uma criança, que ao mesmo tempo toma consciência da fragilidade e da morbidez inerentes à condição humana. E conta com 4 movimentos, sendo eles:  Langsam, schleppend  (Devagar, arrastando), Scherzo, Kraeftig bewegt  (Poderosamente agitado), Feierlich und gemessen, ohne zu schleppen (Solene e moderado, sem se arrastar)  e Stuermisch bewegt (Agitado). 

A sinfonia inicia de forma misteriosa no primeiro movimento. Sons do cuco e de outros pássaros, representados musicalmente, anunciam o despertar da natureza e dão fim à tensão e às dúvidas. Um tema lírico segue.

Acredito que a palavra para os primeiros minutos desse movimento seja justamente "criação". Vemos não só o despertar da natureza, mas o nascimento de um mundo novo. Penso como uma pessoa que, adormecida ou entorpecida, toma consciência então de seus membros e vai notando o mundo á sua volta. Primeiramente apenas frio e escuridão. Um sentimento de vazio, e apenas uma brilhante luz ao fundo. É o sol, o astro rei, mas que ainda não reina fugurante e absoluto no céu, apenas um pequeno brilho surgindo aos poucos nos limites do horizonte. Conforme sua luz vai aumentando, preenchendo a tudo com cor e calor, o mundo vai se tornando visível. O lugar que antes parecia um deserto vai lentamente se mostrando vivo. Numa comparação romântica, é como se o mundo finalmente se abrisse depois de encontrar-se o primeiro amor. Após a abertura da peça, quando o primeiro tema começa a ser desenvolvido, somos tomados por uma sensação acolhedora, envolvente, como a luz do próprio sol, como o aconchego do abraço de um novo amor. Forte, acolhedor. Sinto como se Mahler quisesse envolver a todos num sentimento em particular, e consegue isso com apenas alguns minutos de sua obra. 

Os detalhes vão se tornando mais numerosos, mas aqui, já não é mais a natureza que se mostra, mas sim à nova realidade do amor. Não de forma clara e distinta, como se imaginássemos um casal ou algo assim. Não, Mahler nunca seria tão óbvio, e ao contrário da maioria do outros compositores, o panorama visual de suas obras não nos dá cenas claras, mas apenas nuances e vislumbres, reinando a subjetividade. A impressão que temos então é a de que, apesar de novo esse sentimento, o mesmo já prenuncia as batalhas que haverão de seguir-se em seu desfecho. O tom misterioso e de suspense, ora outra mais acentuado, permanece durante todo esse 1° movimento, nos dando sempre a sensação de que algo repentino está por estourar. O coração então se aperta em apreensão, embora a mesma seja sufocada pela delicada euforia do novo amor. De fato, o tema principal, que dança numa valsa com o tema misterioso, é daqueles que passamos o resto da noite a cantarolar, mesmo após sair da sala de concerto, mostrando que não apenas Beethoven ou Brahms tem esse tipo de poder hipnotizador em suas obras. Mahler mostra com poder então que também domina a própria arte de demonstrar os afetos de sua alma. 

Nosso jovem enamorado, nosso Titã, então vai aos poucos se deixando revelar a nós. De pele clara, cabelos cor de ouro e olhos como o mais doce caramelo, em suas vestes simples de camponês, sua alegria é sentida através dos movimentos espontâneos que os anseios de seu coração provoca numa dança desajeitada e apaixonada.

O segundo movimento é um Landler-scherzo, parecido com os landlers de Anton Bruckner e de Haydn.

E a dança com que se encerrou o 1° movimento tem sua continuidade aqui na 2° parte dessa obra. Como dito, trata-se de uma valsa de um homem só. Ele dança sozinho, apaixonado, pois já não consegue conter em si as doces alegrias de sua paixão. A cada recordação então, um novo passo é inventado. Ele se lembra dos sorrisos trocados, das mãos seguras, dos abraços carinhososo e tímidos. E agora que podemos ver mais claramente sua figura, também o mundo a sua volta se revela e se abre aos nossos olhos.

Estamos no século XIX, numa cidade mediana, mas onde as diferenças sociais são facilmente percebidas. Nosso jovem enamorado é um simples camponês. Sua amada, uma jovem dama da alta sociedade, por quem se apaixonara numa brincadeira do destino. E ela o correspondera, daí vem sua maior alegria. 

Sempre fugindo em seu encontro, nosso casal se refulgia em esconderijos que somente os dois tem conhecimento, e ali, entregam-se um ao outro de corpo e alma. Protegidos ora pelas paredes de uma simples porém acolhedora hospedaria afastada da cidade, ora pelas densas folhagens de um bosque próximo, eles se amam e se deleitam com a presença um do outro.O amor não enxerga suas diferenças, sequer consegue imaginar que algo possa ser tão poderoso no mundo a ponto de os separar. E ainda que haja algo com esse objetivo, sentem-se como se pudessem derrotar o mundo em seu amor. Ao cruzarem as mãos num momento de gozo e furor, nosso herói acorda sorridente de um belo e doce sonho, com a face corada, e o mais belo dos sorrisos estampando-lhe o semblante. Sua alegria explode em gozo e deleite,

O terceiro movimento causou uma certa polêmica na época devido a sua aparente bizarrice. Adaptada como marcha fúnebre, é usada de forma paródica uma melodia infantil bastante conhecida, chamada em alguns países de Frère Jacques e em outros de Bruder Martin. A seu respeito Mahler escreveu no programa para os concertos em 1893 e 1894:

A ideia dessa peça veio ao autor por intermédio de uma gravura paródica conhecida por qualquer criança da Alemanha do Sul e intitulada "Os funerais do caçador". Os animais da floresta acompanham o caixão do caçador morto; lebres empunham uma bandeira; à frente uma trupe de músicos boêmios acompanhados por instrumentistas gatos, corujas e corvos... Cervos, corças e outros habitantes da floresta, de pelo ou pena, seguem o cortejo com fisionomias afetadas. A peça, com uma atmosfera ora ironicamente alegre, ora inquietante, é seguida de imediato pelo último movimento "d'all Inferno al Paradiso", expressão súbita de um coração ferido no mais profundo de si...

A macabra marcha fúnebre com que se inicia esse movimento nos remete realmente à infancia, e mais do que isso, a uma nostalgia por algo que se fora, ou que se pode ir. Não fala de uma tragédia que aconteceu, mas de uma que pode vir a acontecer. Como se, após passado o furor da paixão, nossos amantes percebessem que suas diferwnças podem causar-lhes grandes tragédias e dores. Questionam se não seria melhor sepultarem um e o outro o sentimento que possuem dentro de si. Algo como medo mesclado a ansiedade e mais paixão, uma verdadeira cornucópica de indecisões típicas de uma juventude com os sentimentos à flor da pele.

Eles pressentem então que deverão lutar, um pelo outro, e ambos por seu amor. Não sabem no entanto o quão essa batalha pode ser mortal ou dolorosa. E o sentimento de desolação assola os corações enamorados, que não conseguem mais pensar naturalmente se não estiverem um próximo ao outro. Alguns devaneios perpassam a mente de ambos: deveriam fugir? Assumir-se publicamente? Abandonarem-se? O sono de uma noite fria e vazia, sem o abraço do amado, os assombra e a mente é pega viajando por situações simaginárias. Mesclas de uma guerra e de uma vida feliz longe dali. Retratos de corações que ainda não conheceram a dor na pele e nem o desespero. Crianças, que sentindo os primeiros pesares e apesares da vida adulta, acreditam serem capazes de tudo e de vencer a todos. 

A luz da lua ilumina a face do jovem enamorado que, na segurança de sua pobre casa, e baseando-se somente nos seus braços rijos e fortes pelo trabalho, e na esperteza de sua juventude, crê ser capaz de vencer o mundo por sua amada, e ele se deixa dominar pelo sono...

O silêncio do terceiro movimento é abruptamente interrompido, de forma histérica, pela orquestra no quarto movimento. Conta-se que durante uma das primeiras apresentações da 1° Sinfonia, uma senhora espantou-se e derrubou todos os objetos que carregava na mão. Após alguns minutos a fúria inicial do último movimento é contida e cede lugar a uma melodia lírica. Os temas dos movimentos anteriores são lembrados. Perto do final, ocorre uma nova tempestade sonora, porém, ao contrário do início, que lembrava uma "luta", agora o sentimento é de "triunfo". Um fato interessante é que nesta parte Mahler pede para que os trompistas da orquestra toquem de pé, o que cria um clima triunfante contagioso e incrivelmente belo, que muito me recordou os sopros posicionados nos cantos da orquestra no Requiem do Verdi e a banda militar na Ouverture 1812 do Tchaikovsky

Ele é despertado de forma brutal, e o medo repentinamente toma conta de seu ser e paralisa seu corpo. Eis então que é chegada a hora de por a prova a força de seu amor. Mais uma vez temos um tema poderoso para pensar durante toda a noite. Não muito distante metricamente daquele tema viciante do 1° movimento.

Voltando ao jovem, este teve sua casa invadida por capangas do pai de sua amada, que descobrindo a forma como este deflorara sua estimada filha, jurou-lhe a morte. Consegue fugir por uma janela antes que lhe alcancem mas ao entrar no bosque que se abre a sua frente, ele consegue ver sua casa arder em chamas. A hora é essa. Nessa noite ele deve então resgatar sua amada e fugir com ela dalí para sempre. Para onde vão? Não sabe, mas somente sente que essa é sua única opção.

Os devaneios de abandonar o amor que sente por ela foram queimados com sua casa e se desfizeram no tempo como a palha se desfaz ao fogo. Como pudera ser tão baixo a ponto de sequer cogitar largar sua amada? Nada no mundo teria sentido sem ela e assim, ele parte em sua missão de, no silêncio da noite, raptar sua amada da vigilância cerrada de seu pai, e com ela em seus braços, partir para uma vida nova longe daquelas terras. 

Entrando silenciosamente pelas terras inimigas, ele encontra sua dama a repousar delicadamente sob a luz do luar, que lhe revela a visão do paraíso. Sua beleza resplandece em meio à luz da dama da noite e depois de seu despertar, ambos fogem dalí, correndo com todas as suas forças. Segue-se uma frenética e deseperada perseguição, onde sentimentos de medo brotam subitamente no coração de ambos, abafados apenas pelo medo de perderem um ao outro. Tão logo se encontram longe dos possíveis captores, já sentem nascer em si o sentimento de vitória e triunfo. O sentimento de saber que podem agora viver despreocupadamente, tendo um ao outro para todo o sempre. De fato, a alegria brota do coração dos dois como uma nova dança, uma nova valsa, sem realmente o ser, mas dessa vez não mais solitária, mas uma dança onde ambos deixam levar-se pelos sentimentos que nascem dentro de si e que de fato, mostrou que o amor, embora não acabe completamente com o medo em si, é mais forte do que esse, e quando é verdadeiro, pode sim, vencer a tudo e a todos. O amor venceu de novo. Os outros apenas precisam conformar-se a isso, e saber que, ali, depois daquele bosque, em algum lugar por dentre as montanhas, existe um casal que vive apenas um para outro, longe de tudo e de todos que possam oferecer o mal a seu amor. 

Penso então que essa obra seja uma exaltação desse sentimento que nutriu o coração de Mahler. O Amor. Não canso de repetir essa palavra pois penso que, nem se fosse dita milhares de vezes, conseguiria exprimir a força desse sentimento poderoso, misterioso, que rompe barreiras, quebra obstáculos e, mesmo virando a vida dos homens de cabeça pra baixo, ainda é o motivo pelo qual as pessoas ainda lutam e vivem a procurar. Esse sentimento único, capaz de doar e dar a vida, esse sentimento de união, que faz a humanidade curvar-se sobre si e sobre seus desejos, e que, mesmo esquecido por muitos, ainda há de ser reconhecido como o rei absoluto de tudo o que existe!

~

Como sempre, ouvir Mahler é uma experiência e tanto. E como sentia falta de escrever algo que de fato considero ao menos parcialmente belo. Sim, apenas em ocasiões como essa consigo deixar a imaginação de fato voar livremente pelas páginas das partituras e pelos sons mágicos, capazes de me levar aos mais diversos lugares para viver as maiores aventuras aqui depositar o resultado dessa viagem fantástica.

Me surpreende ainda conseguir escrever imaginando uma história de amor com casais héteros, coisa que antes me era quase impossível, pois pra ser sincero, ainda não entendo completamente como é amar alguém de outro sexo. Enfim, bom ver que estou começando a entender que de fato, amor é amor, independente da forma externa que tenham seus amantes. A alma não tem sexo e portanto, duas pessoas podem amar-se independentemente de qualquer fator externo; Começo a compreender isso, e a quebrar as minhas próprias amarras que ditavam que o amor verdadeiro só poderia existir entre pessoas do mesmo sexo. 

De qualquer forma, essa obra se mostrou de fato uma grande homenagem a esse sentimento que guia nossas vidas, como se dissesse, bradando alegremente: 

Viva o Amor!

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Fontes dos textos em itálico:

Marc Vignal, Mahler, Editora Martins Fontes.
Michael Kennedy, Mahler, Editor Jorge Zahar.
Jean & Brigitte Massin, História da Música Ocidental, Editora Nova Fronteira.

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