terça-feira, 9 de agosto de 2016

Deixe que eu chore...

"Lascia ch'io pianga, mia cruda sorte, e che sospiri la libertà!"
(Handel)
Normalmente, mudamos de humor várias vezes durante um dia, devido a esses ou aqueles acontecimentos. Algumas coisas tem o poder de mudar a forma como nos sentimos. nos vemos e encaramos o mundo e os outros. Noutros dias porém, já acordamos com o sentimento que nos acompanhará o dia inteiro. Hoje foi um desses dias, e a forma como me despertei, me preocupou muitissamente pois, das últimas vezes que isso me aconteceu, coisas muito ruins aconteceram.

A palavra que melhor descreveria como me senti no raiar do dia seria 'torpor'. Fui tomado por uma profunda diminuição da sensibilidade e de uma poderosa indolência, resultado, penso eu, de uma noite repleta de sonhos ruins, verdadeiros pesadelos dos quais eu não conseguia escapar.

Comumente, não me lembro dos sonhos que tenho, por isso nem mesmo sei se costumo sonhar, creio que meu sono seja demasiado pesado pra isso. Mas infelizmente, quando acabo por me lembrar de um sonho, é porque de alguma forma ele me marcou, na maioria das vezes de uma forma boa, mas infelizmente essa noite tornou-se a excessão. 

Sonhar com elementos do passado é algo pra mim profundamente desagradável, ainda mais quando desperta coisas que com muito custo eu fiz adormecer no fundo do meu subconsciente e que gostaria que ficassem lá pra sempre, sem nunca retornarem à minha consciência. Sonhar com pessoas que fizeram parte do meu passado, no entanto, envolve uma enorme e dolorosa contradição. Primeiramente pois, quando amamos, a presença do amado é sempre bem vinda, e alenta o coração, simplesmente pelo fato de sua visão. Visão esta um tanto quanto infantil, mas que infelizmente se faz presente e real quando nos referimos a memórias e lembranças. E como já disse uma porção de vezes: as lembranças são romantizadas, as memórias não. Aquelas costumam ser cor de rosa e aumentadas pontualmente pela nossa criatividade segundo nosso desejo e saudade. Estas, são secas, reais e sofrem o mínimo de alterações possíveis. Por isso, lembranças costumam trazer dor aquele que já está prostrado. Em segundo lugar, esse tipo de sonho traz uma dor tão profunda quanto se a situação tivesse sido real. Logo, como os sonhos, pelo menos no meu caso, são frutos dos meus desejos e lembranças arraigadas, os meus sonhos também são romantizados, e como sabemos, na maioria das vezes, a linha que difere o romance da tragédia é tão tênue que se torna quase imperceptível. No meu caso, chego a duvidar de sua existência.

Assombrado então por esses fantasmas do passado, motivado certamente pelo infeliz avistamento no domingo, acordei tentando desesperadamente suprimir os muitos sentimentos que brotavam em mim. Raiva, mágoa, ódio, tudo me apertando, me esmagando contra meu proprio coração. Tive então de buscar refúgio nesse esconderijo dos fracos: o torpor. Desde os últimos meses, entrar nesse estado de privação dos sentidos por vontade própria se tornou fácil pra mim. E é preocupante notar isso, pois sei bem que, a principal caracteristica das pessoas que sofrem de profunda depressão é justamente o acorrimento a este estado. Claro, não estou dizendo que estou em depressão, mas pra alguém que já foi diagnosticado com início de depressão há não muito tempo atrás, outra não seria de se assustar.

Nesse estado de torpor, nos dividimos então em duas fases muito distintas. A exterior, mais óbvia aos outros, é que é tomada pela potente perda dos sentimentos, ocasionando um semblante cansado, apático e miserável. Em outras palavras menos poéticas, passei o dia no sofá com cara de quem estava a contemplar a morte. A segunda fase, a interior, é o gatilho que ocasiona a exterior. A consciência fica tão repleta de sentimentos e pensamentos confusos que, na tentativa de organizar tudo no interior, o exterior fica por ser esquecido, o que resulta na aparência já dita. 

Não diria que o estado de torpor é ruim, e justamente por isso me preocupo. Como já disse, acostumar-se a isso ou apegar-se a ele é sinal de coisas ruins e da última vez que entrei nesse estado por vontade própria, meses atrás, quase não consegui sair dele sem ajuda. Felizmente, aqueles dias me renderam alguns do melhores posts que já escrevi, diga-se de passagem. 

Quem observa por fora, costuma dizer que as pessoas entorpecidas já desistiram de viver e de lutar. Não há erro maior do que esse. Muito pelo contrário, quem se encontra nesse estado está a travar uma batalha interna tão violenta que não há tempo para se preocupar com o exterior. Ele se preocupa em derrotar o mal que há dentro de si, e esse resiste violentamente. Os sentimentos que eram pra estar no cemitério dos esquecidos, ressurgem como que zumbis saindo grosseiramente de suas valas para assombrar e devorar o alvo de suas ambições. 

Como disse no post de domingo, certas coisas eu não gostaria de rever, justamente por conta dessa minha sensibilidade aumentada que transforma qualquer brisa numa verdadeira tempestade. Dramático? Nem um pouco. E essa minha caracteristica tão latente muito me incomoda, e de fato, me irrita profundamente. Pois tudo está sempre bem, correndo tranquilamente, como as águas claras e límpidas de um pequeno riacho onde brincam algumas crianças. Sem que essas percebam, começa a chover um pouco distante dalí, e em sua nascente, uma forte tempestade despeja uma violenta quantidade de água no rio, que logo se transformará num enxente que, descendo com toda a violência, certamente atingirá as crianças que, brincando inocentemente na água, imaginam que as folhas e galhos que ali vem chegando são apenas frutos do ocaso. Eis que estão são pegas de suspresa pela correnteza, e levadas rio abaixo. Por mais que saibam nadar, de nada adianta, pois a água é forte demais pra que consigam dela escapar, e elas rodopiam violentamente então rio abaixo, e enquanto tentam desesperadamente salvar suas vidas, a correnteza continua violenta e impassível, destruido tudo quanto há em sua frente, incluindo ceifando suas pobres e indefesas vidinhas insignificantes.

Sempre me uso dessas metáforas da natureza, pois são as que fluem mais naturalmente de mim, e como alguém sensível à própria natureza, penso que consiga compreender a semelhança existente entre nossas vidas e os ciclos que regem o mundo ao nosso redor. O fato é, e aqui eu me permito repetir o que disse no domingo, que eu não gostaria de tê-lo visto, pois sabia que essa seria minha reação. Enquanto me esforçava pra não conter a lágrimas que queria correr copiosamente pelo meu rosto, eu deixei que meu coração sofresse então sozinho. E senti como se o mesmo fosse arrancado de mim, por mãos que mesmo sendo frias, queimavam como brasa, e esmagando o meu pobre orgão, espalhou meu sangue, a essência da minha vida, pelo chão, e uma vez absorvidos pelo solo, sangue e coração, eu fui ali deixado, prostrado, procurando uma forma de voltar a vida. Como um animal já cansado da corrida e abatido pelo feroz predador se debate, como se implorasse por sua própria vida. Como se acreditasse que a fera que o degolou a garganta tivesse o poder de estancar o sangramento, deveras um débil pensamento.

As consequencias desse encontro inesperado me incomodaram por dois motivos: O primeiro deles, pois evidenciou minha óbvia necessidade de amadurecimento e superação. Até quando vou me prender a alguém que muito provavelmente sequer se lembra de minha existência? Por quanto tempo irei ainda me torturar pelos erros que cometi e que me levaram a esse destino? O segundo motivo é que muito me entristeceu o fato de ainda não ser capaz de voltar a amar completamente. Ora, já estou amando, isso é fato, mas se estou ainda preso a esse passado maldito, significa que nem todo meu coração está empenhado nesse novo sentimento. E isso me magoa profundamente pelo fato de que, ninguém deve ser amado sob medida, sob ressalvas, sob condições. As pessoas não merecem frações de amor, ou frações de outras pessoas. Elas merecem amor por inteiro, verdadeiro. E isso é algo que venho repetindo a mim mesmo durante todos esses dias.

O aprendizado que tirei daqui então? Ainda preciso superar. O que achei que tinha superado, na verdade se mostrou apenas o esconderijo óbvio de uma criança covarde e assustada. Não era superação. Será quando, eu puder ficar frente a frente com essa pessoa, e não sentir absolutamente nada, além de agradecimento pelo tempo que passamos juntos. Sem maiores sentimentos, sem saudades, sem ressentimentos. Como farei para chegar a esse objetivo, ainda não sei. Tenho trabalhado mais em minha espiritualidade ultimamente. Busquei voltar a comunhão que já a algum tempo tinha me afastado. Penso que esse seja o passo mais importante. Mas ainda há um longo caminho que preciso percorrer.  

Preciso aprender a deixar os sentimentos profundos e as dores apenas nestas páginas, nestas palavras, e deixar que os outros voem livremente, longe das prisões do meu coração. E assim como o falcão que voa imponente sob o céu, quando sente uma autoridade na terra maior que a sua, ele se entrega a esse homem como seu servo leal. Da mesma forma são os sentimentos e as pessoas. Elas voam livremente, mas quando algo as atrai, é de uma lealdade sem igual a relação que daí nasce. Não é querendo atrair as pessoas com palavras exageradas que conseguirei esse objetivo. Muito embora essas palavras sejam aquilo que tenho de mais real sobre mim. 

Que eu consiga então continuar minha luta, minha superação. Me livrar desse estado de torpor que me deixa a beira de um abismo mortal que seria retornar aquele estado que com muito custo consegui sair. Que eu consiga nutrir sentimentos fortes e verdadeiros, mas saudáveis, que não causem dor nem a mim e nem ao próximo. Que eu consiga crescer. Por mais que eu ainda chore, por mais que eu ainda me pergunte como foi que cheguei aqui, por mais que ainda seja difícil, eu preciso me libertar das correntes do meu próprio coração, e é por isso que eu canto:

"Deixe que eu chore, pela minha sorte, e que eu suspire pela liberdade!" 

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